Várias pessoas já me perguntaram sobre como se escreve uma crônica. Bem, não é uma das coisas mais difíceis de se construir, visto que uma crônica é só um relato de um pequeno acontecimento docotidiano. O problema é que ninguém quer parar e observar esse pequeno acontecimento do cotidiano, que acontece todos os dias na frente de todos. Veja bem. É fácil. Se você não tem alma vagabunda, alma de flâneur, do tipo que gosta ficar observando tudo ao seu redor, você pode inventar a crônica a partir de suas experiências. Mas a observação constante do cotidiano é, de fato, o que faz a crônica.
Mulheres são ótimas personagens de crônicas. Convenções e hábitos sociais juntos com as mulheres fazem crônicas melhores ainda. A quebra e a desconstrução destas convenções e hábitos onde personagens do gênero feminino participem do enredo fazem crônicas muito mais que melhores. Por exemplo, não seria genial um pai viajar para encontrar com o filho na cidade onde este mesmo cursafaculdade, e ao chegar, descobrir que o filho estuda muito, não sai a noite, não se envolve com mulheres, e gasta todo o dinheiro recebido com livros ao invés de bebidas e cigarros? Isso para o pai é revoltante! Como esse canalha do filho dele pode gastar todo o seu dinheiro com estudo? Onde estão as mulheres? Onde estão as garrafas de whisky? E o pior, comprar livros às custas dele? Isso é um horror!
Pois é. Isso é uma crônica do Luís Fernando Veríssimo. Genial, não? Quase, para ser genial só faltaram as mulheres. Fazer crônicas é fácil. Basta algum conhecimento da língua portuguesa e alguma prática em redação. Vou provar isso começando a escrever uma crônica aqui mesmo e agora.
Primeiro, criemos dois personagens. Acho que vou me decidir por duas mulheres, elas sempre são imprevisíveis e qualquer coisa pode ser feito por elas. As duas se encontram no meio da rua, são amigas a mais de 10 anos. A intimidade entre elas é visível. Encontram-se e resolvem parar em um café para colocar a conversa em dia. Dessa situação podemos desencadear várias outras. Elas podem ir ao banheiro juntas, ou pode aparecer na porta do café um ex-namorado de uma que a trocou por outro homem, ou podemos até fazer com que um carro entre voando pela vitrine e mate instantaneamente as duas, mas isso não seria bom pois a crônica terminaria precocemente, e essa não é a nossa intenção. Vou me decidir então pela opção de uma delas resolver ir ao banheiro. Como sempre, a outra vai atrás, um hábito social tipicamente feminino. Pelo fato das mulheres sempre irem juntas ao banheiro, alguns deles já são construídos de maneira que cada box tenha dois vasos sanitários, para que as duas possam sentar e conversar enquanto fazem o que tem de fazer.
Um banheiro bonito (e só isso, porque crônica narrativa não tem muita descrição). As duas entram conversando no banheiro. Um fato normal. Uma puxa o batom da bolsa enquanto a outra vai ajeitando o soutién (sei lá como se escreve isso). Até aí, um fato normal da rotina de qualquer mulher. Então aqui, nesta parte em que o texto já está se tornando chato, inserimos a surpresa, o ápice, a virada de mesa da crônica. Paula (é o nome de uma delas) abre a porta de um dos boxes do banheiro e se depara com o seu ex-namorado (aquele que a trocou por um homem) sentado num vaso. Ela solta um grito escandaloso (“Seu sem-vergonha!”) enquanto a outra amiga grita assustada.
Se quisermos, podemos interromper a narrativa aqui e começar outra aparentemente não conectada a nossa história. Atenção. É aqui que acontece a mágica da crônica:
Naquela tarde, Laércio dirigia seu carro tranquilamente pela rua. Tinha marcado de encontrar com seu namorado, Luis, que tinha recentemente assumido sua homossexualidade e largado de sua namorada para ficar com ele. Foi neste momento que um homem empurrando um carrinho de pipocas entra na frente do seu veículo sem perceber o perigo, o que fez Laércio se desviar bruscamente numa guinada de volante, indo de encontro à parede de um café, destruindo todo o banheiro feminino do estabelecimento, matando duas mulheres perto do espelho e um homem vestido de mulher sentado na privada.
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