Rangel Alves da Costa*
Para o bem ou para o mal, verdade é que o coronelismo por muito tempo ordenou o fazer e o viver pelos sertões nordestinos. Grandes latifundiários, senhores financeiramente aquinhoados, influentes amigos do poder e do mando em outras esferas, se arvoravam de comandar a vida não só de empregados seus como de todos aqueles que vivessem ao seu redor, encurralados que eram pelas esmolas aviltantes, pelos assistencialismos ou pelo temor espalhado.
E foi num cenário assim, num quadrante de sol sangrando pelas tocaias e emboscadas, em meio a nojentas tramas de coronéis, que se passou a história adiante relatada. Dizem que muitos anos atrás, sob o manto da desvalia e o sangue dos inocentes e destemidos molhando a terra rachada, quando o latifúndio era o poder e o mandonismo era a ordem, os coronéis anteciparam o poema drummondiano: Coronel Quintiliano odiava o Coronel Tertuliano, que odiava o Coronel Hercilino, que odiava todo mundo, menos a jagunçada.
Na verdade, ninguém com mando e poder podia odiar a jagunçada. Os jagunços eram seus mensageiros, seus escudos e emblemas, suas vozes mais ignorantes, seus atos quando era impossível dar cabo de qualquer coisa com as próprias mãos. Do mesmo modo que Antonil cita que os escravos eram os pés e as mãos do Senhor de Engenho, os jagunços o eram para os coronéis nordestinos.
Coronel que respeitasse sua patente forjada ou adquirida no coito da Guarda Nacional, não podia deixar ter, no mínimo, uma trinca de celerados à sua disposição. Ou fazia assim, mantendo sob suas ordens uma leva de destemidos malfeitores, ou corria grande risco de ter o seu terno de linho branco manchado do sangue da vingança perpetrada pelos seus tantos e igualmente poderosos inimigos. Era máximo deleite de um saber que o outro tombou com mancha vermelha no linho branco.
Era fera engolindo fera, como se dizia nos segredos de quixabeira. Mas tudo covarde, tudo fumaçando valentia através da crueldade do seu servo das atrocidades, que era o jagunço. Dificilmente se encontrava um coronel que se dispusesse a resolver suas vinditas pessoalmente, pois se refestelando nos casarões a ingrata sorte de todos, do maior ao menor. Eis que todo mundo era seu potencial inimigo, principalmente o seu cabra de mando, de quem tinha medo de se mijar nas calças.
E foi neste cenário de poucos donos e tantas vítimas, que um dos mais afamados mandonistas, daqueles coronéis que mandava fechar cabaré para seu desfrute pessoal, resolveu que deveria aumentar suas terras a qualquer custo. Achava pouco meio mundo de terra, bicho e gente. E para tal inventou uma mentira e ordenou que um de seus cabras fosse espalhá-la nas proximidades dos ouvidos do coronel inimigo.
O mensageiro, cabra escolhido a dedo, sabendo que não tinha acesso ao coronel desafeto do patrão, chegou diante um de seus jagunços e disse que avisasse ao patrão que o coronel fulano de tal iria lhe tocaiar para matar. Logicamente que o coronel era outro e não aquele a quem estava a mando, e tudo pra forçar um confronto entre eles.
Se a lógica acontecesse seria tudo claro demais. Inventando a mentira, o Coronel Quintiliano queria inimizar ainda mais e colocar em confronto aberto os Coronéis Tertuliano e Hercilino. Dizendo que um iria matar o outro, logicamente que um se anteciparia e daria logo cabo da vida do inimigo. E seria menos um desafeto para o coronel mentiroso. Do outro daria um jeito para mandar tocaiar depois. Jagunço servia pra isso mesmo.
Só que o Coronel Quintiliano não estava esperando que tudo ocorresse de modo diverso do planejado. Quando o Coronel Tertuliano soube da promessa de morte feita pelo Coronel Hercilino, logo decidiu que se estava correndo risco de ser tocaiado, então teria que primeiro dar cabo à vida de um inimigo de longa jornada, pois não poderia morrer sem matar primeiro o temível concorrente e opositor Coronel Quintiliano. O mentiroso.
Esperando somente saber o resultado do confronto entre os outros dois coronéis, o Coronel Quintiliano ficou de corpo aberto, à mercê do enraivecimento dos capangas do Coronel Tertuliano. E quando saiu para galopar ao entardecer, e sem estar acompanhado de nenhum dos seus jagunços, recebeu um tirombaço vindo de trás de um tufo de mato.
Assim, tornou-se vítima da própria mentira. Mas sua morte fez flamejar ainda mais o dantesco quadro de disputas e mortes tão próprias daqueles tempos medonhos. Eis que os outros dois coronéis passaram a se armar ainda mais para aumentar sua força política e de mando sobre tudo e todos, mas principalmente pelas terras deixadas pelo coronel desaparecido.
De lado a lado os jagunços esquentaram suas armas. Dizem que daí em diante se deu uma guerra tão violenta que quase põe fim ao mundo. Mas não. Apenas do mundo dos coronéis jaguncistas, pois o tempo chamou para si o dever de ir, aos poucos, ceifando aquelas ervas daninha.
Poeta e cronista
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