Rangel Alves da Costa*
Hoje não, que dei pausa até no vinho, mas noutros tempos eu era um dos mais adeptos da aguardente - branquinha da melhor qualidade, de engenho mesmo - misturada com casca de pau. É a bebida do sertanejo, é a cachaça verdadeiramente matuta, e com serventia até medicinal, segundo os mais velhos ainda confirmam.
Outro dia segui até Poço Redondo, meu berço de nascimento nas distâncias do mais árido e esturricado sertão sergipano, e dando voltas pela cidade, revendo amigos, proseando com um e outro, pisando num chão que ainda é tão meu, eis que entro numa bodega para necessários cumprimentos.
Uns quatro ou cinco amigos dividiam uma mesa entre cervejas e qualquer palavra. Todos jovens, sem as feições de alguns amigos que encontrava noutros tempos no mesmo local. Eles, os velhos companheiros - com idade para serem meus avôs - não estavam mais por ali, pois muitos já abriram a última cancela, mas de repente os avistei na prateleira além do balcão. Bastou meu olhar divisar as garrafas de aguardente com casca de pau e novamente senti a presença deles.
O dono da bodega, o sempre cordial Nanô, percebeu o direcionamento dos meus olhos, a mudança na minha feição, e logo quis saber se eu estava lembrando outros tempos. Confirmei que sim, então ele indagou qual eu beberia daquela vez. Infelizmente agora não, mas deixe aí apurando, pois volto qualquer dia para saborear de uma a uma, respondi um tanto entristecido. E assim porque me deu uma vontade danada de dizer “desça uma umburana de muitos dias, apurada mesmo”.
A bodega atualmente está diferente, mais arrumada e sortida, com rótulos modernos, mas a prateleira da casca de pau não saiu do lugar. E não podia ser diferente, pois ainda hoje há uma clientela cativa que não troca uísque da melhor qualidade por uma boa dose de cachaça apurada na raiz ou casca de pau. E quanto mais tempo de mistura e infusão mais saborosa fica a danada.
O preparo da cachaça não requer procedimentos especiais, mas alguns bodegueiros mais antigos sempre têm o cuidado de não colocar a raiz, a casca ou folha além da conta. Afirmam que apurada demais acaba amargando a bebida e tirando o gosto da cachaça. Também não se deve servir a infusão preparada no mesmo dia. Tem que esperar o tempo suficiente para a mistura ficar apurada.
É no apuro que se observa aquela cor nas garrafas expostas na prateleira. Misturas existem que permitem o surgimento de uma coloração quase chegando ao vermelho. A casca de pau de angico, na mistura de muitos dias, logo se torna duma vermelhidão amargosa que mais parece uma beberagem medicinal. Com efeito, a grande maioria das infusões possui características medicinais se absorvidas em quantidades moderadas.
Diante de dor nas juntas, queimor pelo corpo, resfriado, barriga ruim, moleza por todo lugar, dores desconhecidas e outras enfermidades, o velho sertanejo prefere a bodega ou botequim à farmácia. Do mesmo modo, não come alimento pesado como carne de porco ou outro prato gorduroso se antes não selar o bucho com uma boa dose de casca de pau. Tanto bebe a água de proteção como oferece ao santo, que parece viver de boca aberta ao pé do balcão.
Muitas foram as doses que já beberiquei ao lado de grandes e saudosos amigos. Eu era quase um estranho em meio a roceiros, vaqueiros, pedreiros, aposentados. Um rapazote em meio àqueles senhores de tantas lutas e histórias. Mas era por isso mesmo que eu os procurava sempre. Tomava uma dose apurada, mas também bebia de sua história, de seus causos e proseados que tantas serventias ainda possuem na minha trilha pelas raízes sertanejas.
Angico, umburana, erva cidreira, bonome, alecrim, capim santo, e toda uma vegetação sertaneja misturada à cachaça limpa, apurada e colocada na prateleira do botequim. E sinto na boca o gosto bom de tanta saudade. E até me sinto embriagado de recordações daqueles velhos amigos sertanejos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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