Em tempo de transações milionárias no futebol, quando o dinheiro sempre fala mais alto, não dá para imaginar uma negociação nos moldes da antiga “Cabine do sim ou não”, quando o participante, com fones no ouvido, podia se dar mal e trocar uma moto por um isqueiro. Mas você trocaria um jogador de futebol por um ônibus? Na Bahia dos anos 80, a resposta foi um sonoro sim. E o responsável pela transação não estava trancado em uma cabine. Mais que isso: garante que fez uma grande troca.
Fundada em 1974, a Catuense subiu para a Primeira Divisão do Campeonato Baiano seis anos depois. Para o acesso, montou um time com grandes nomes de diversas partes do estado. Contou ainda com reforços do Palmeiras e do Flamengo. Entre os jogadores convocados por Antônio Pena, dono da equipe, estava Roberto Nascimento, jovem promessa do Botafogo-BA. Ele se destacou na Segunda Divisão e recebeu a promessa de que ia continuar. O problema seria como conseguir a liberação do clube de formação. E saída foi sobre rodas.
Roberto Nascimento observa foto de quando vestia a camisa da Catuense (Foto: Raphael Carneiro)
- Antônio Pena me chamou e disse: "Roberto, você tem que voltar para cá. Chegue lá no Botafogo-BA e diga que não quer ficar" – contou o ex-jogador.
Menino, recém-chegado aos 20 anos, o meia fez o que lhe foi ordenado. Mas faltou combinar com os dirigentes do Botafogo-BA. O pedido para sair não foi aceito, até que surgisse uma necessidade externa. Acostumado a treinar na Fazendinha (CT do Bahia) e na Vila Militar, ambas em Salvador, o Mais Simpático estava de mudança para Camaçari. A ida para o município vizinho era feita em um ônibus alugado, transporte muito oneroso na época.
Por outro lado, a Catuense é uma equipe fundada a partir da empresa de ônibus que leva o mesmo nome do clube, ambas pertencentes a Antônio Pena. A frota chegou a ter 400 veículos. A ligação entre os dois era tamanha que todos os funcionários da companhia eram sócios do clube de futebol – na época eram 1.200 – e tinham, obrigatoriamente, mil cruzeiros descontados na folha em forma de contribuição para a equipe. Assim, o útil se uniu ao agradável.
- O Botafogo-BA precisava de um ônibus. Eles não tinham um ônibus para transportar o time. Então vieram até mim e falaram que queriam comprar um ônibus. Acertei a venda para eles, mas não tinham dinheiro. Como eu precisava de um jogador, fizemos essa troca. O ônibus valia uns 200 mil na época – revela Antônio Pena, sem qualquer constrangimento.
Toda a negociação foi feita sem a participação de Roberto Nascimento. Como não tinha sequer um empresário na época, o jogador também não recebeu nenhum tipo de benefício. Só o baque de saber que foi trocado por um ônibus e a fama gerada pela repercussão do caso, que parou até no Globo Repórter (veja vídeo ao lado).
- Depois de tudo, Antônio Pena me disse: "Olhe, você valeu um ônibus." Eu perguntei: "Como assim?". Ele me respondeu, naturalmente: "Eu troquei você por um ônibus." Na época foi um impacto. A transação normal é em dinheiro. Me senti, assim, chateado. Para mim foi diferente. Apareceu em todas as manchetes que eu fui trocado por um ônibus. Eu me senti desvalorizado, me senti um objeto, e não um jogador. Mas depois aceitei normal – recordou Nascimento.
Para ele [Roberto Nascimento] foi bom. Ele vivia só alugando carros dos outros, sem dinheiro"
Antônio Pena
Três décadas depois do ocorrido, Antônio Pena lembra com bom humor do fato. Reconhece que a Catuense fez um grande negócio, mas defende que a troca foi melhor para o jogador.
- A ideia da troca foi do Botafogo-BA. Eles que queriam o ônibus. Para mim, se não viesse esse jogador, eu iria procurar outro. Para ele foi bom. Ele vivia só alugando carros dos outros, sem dinheiro. O Botafogo-BA não tinha renda. Aqui na Catuense foi melhor para ele – disse.
Roberto reconhece que a transação foi um salto na carreira.
- Ganhava uma ajuda de custo no Botafogo. Já na Catuense, eu recebia um salário. Saí de uma vida praticamente de rua para, de repente, estar em um clube, com salário, estrutura, tratamento 100%. Eu vi aquilo e me acomodei. Eu ganhava salário e ainda tinha prêmio, algo que eu nunca tinha visto na vida. Eu era um menino. E me empolguei demais com aquilo. Pensei logo: "Esse é o time!" – reconheceu o ex-jogador.
ANDANÇAS E ENCONTRO COM RENAN CALHEIROS
No fim, a troca foi boa para os três lados. O Botafogo-BA teve o ônibus para levar os jogadores para o treino. Roberto Nascimento ganhou mais e se manteve em um time com maior estrutura. E a Catuense? Bem, a Laranja Mecânica (como o time ficou conhecido nos primeiros anos de existência) teve um jogador titular pelos oito anos seguintes. O período em que o meio-campo esteve no time de Catu foi apenas dois anos inferior ao tempo proposto para a vida útil de ônibus interestaduais.
Após deixar o time do interior da Bahia, Roberto Nascimento rodou bastante pelo país. Galícia, Treze-PB, ABC, CRB, Pouso Alegre-MG, América-RN e ASA de Arapiraca. Neste último, mais um dos "causos" importantes para a história do jogador.
Recorte da época mostra Roberto Nascimento em ação pela Catuense (Foto: Reprodução)
O ex-jogador havia feito um acordo verbal com o CSA para defender o time alagoano. Mas a proposta foi por água abaixo quando o amigo Mauro Fernandes fez uma ligação. Diante de uma proposta do ASA, Roberto foi orientado por Fernandes a pedir ao clube de Arapiraca o dobro do que havia acertado com o CSA. Deu certo. Além do salário dobrado, Roberto ganhou também luvas maiores. Tudo pago em um hotel de Maceió pelo atual presidente do Senado.
- Fiz os exames médicos em Arapiraca, assinei o contrato e me levaram de volta para Maceió. Na volta, nunca me esqueço. No hotel Jangada, que era de um dos diretores, eu recebi o dinheiro nas mãos de, acredite se quiser, Renan Calheiros.
TELEFONIA E SIMPLICIDADE
Roberto Nascimento encerrou a carreira em 1994. Desde então, não se envolveu mais com o futebol. Virou motorista de um técnico de telecomunicações, aprendeu e enveredou pela área. Apesar de ter atuado ao lado de jogadores como Bobô e Beijoca, não teve a mesma fama. Um dos filhos chegou a treinar na Catuense, mas a carreira não foi para frente.
Ex-jogador é bastante conhecido e querido na
comunidade onde mora (Foto: Raphael Carneiro)
comunidade onde mora (Foto: Raphael Carneiro)
Quase dez anos depois de ter pendurado as chuteiras, lembra feliz do episódio que o deixou famoso. No segundo casamento, luta para sobreviver e manter os quatro filhos. Um dia antes da entrevista ao GloboEsporte.com, foi demitido, mas não se abate. Da mesma forma que fez quando foi trocado por um ônibus, prefere ver o lado positivo.
Já a Catuense voltou a brilhar no cenário estadual. O neto de Antônio Pena, Raimundo Pena, é o presidente de direito, mas quem manda no clube continua sendo o fundador. A equipe se classificou para a segunda fase do Campeonato Baiano e terminou na quarta colocação do Grupo 3.
Atualmente, Roberto vive em uma comunidade conhecida como Biribeira ou Cassange, na estrada CIA-Aeroporto. É o morador mais conhecido do local. Basta pronunciar o primeiro nome para que os vizinhos se disponham a chamá-lo. A casa ainda está em construção. Sem muitos móveis, o espaço se torna amplo. Água encanada não existe. A comunidade é abastecida por uma fonte da proximidade.
Em um cenário bem distinto dos grandes jogadores e ex-jogadores, o futebol não deixa de fazer parte da vida dele. Acompanha diariamente jogos e noticiários. No fundo sabe que, querendo ou não, seu caso ficará na história do futebol brasileiro.
- Nunca mais vai ter igual. Imagine o Neymar trocado por um ônibus! Hoje em dia não tem nem comparação. Hoje seria como trocar um jogador por um Boeing – riu Roberto Nascimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário