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quinta-feira, 19 de março de 2015

CRÔNICA: ESPINHOS, URTIGAS E URUBUS

Rangel Alves da Costa*


Pisando em espinhos, lanhado por urtigas e cansanção, assim João Bonome despontou na vereda. Não podia seguir por outro atalho, por uma estrada aberta, pois se assim o fizesse seria avistado pelos soldados da volante.
Na verdade, entrou na mataria calçado em roló, com perneira até o calcanhar e roupa dura de enfrentar as durezas da lide. Mas logo torceu o pé se desvencilhando das pedras e num repente parecia que não cabia mais no sapato sertanejo. Teve de se desfazer do calçado e seguir pisando por cima do que encontrasse pela frente.
Também a roupa foi logo pinicada pelas pontas dos espinhos arbustivos. Já estava em frangalhos quando resolveu jogar o resto da camisa fora e ficou somente de calça rasgada. Estava quase nu no meio do mato, envolto em galhos cortantes, urtigas valentes e cansanções desatinadas.
A dor era tão forte, os lanhos pelo corpo eram tantos e insuportáveis, que certamente desfaleceria se parasse à sombra de qualquer pé de pau. Os espinhos deixavam os pés sangrando, as pernas sem proteção se viam lanhadas pelos açoites pontiagudos, o restante do corpo fervilhava pelo contato com as plantas urticantes.
Mas tinha de suportar muito mais. O sol sertanejo parecia abrasado, a pela queimava como toucinho em fogueira. O calor era tão forte que o corpo inteiro se derramava numa graxa líquida e malcheirosa. Porém tinha de seguir, tinha de andar o mais depressa possível. Muito dependia de seu esforço em alcançar o destino.
Seu nome, como dito acima, era João Bonome. Um nome sertanejo acrescido do nome de uma árvore que simboliza a força nativa do sertão. Um homem de puro destemor, aguerrido e valente. Não valentia de matar, de ferir, de violar a vida alheia, mas na luta debaixo de tanto sol.


Mas por que João Bonome estava fazendo aquele percurso com tanto sacrifício e sofrimento? Simplesmente para avisar a Lampião e seu bando, arranchado numa coito da região, que a soldadesca perseguidora estava pelos arredores e, portanto, no seu encalço.
Esse era um trabalho geralmente feito por coiteiros, que eram as visões exteriores do cangaço. Um bom coiteiro não só fornecia ao bando o que ele precisasse na sua estadia num coito de ribanceira ou meio do mato, como servia de emissário e de informante acerca de tudo o que estivesse acontecendo pelos arredores, principalmente sobre a presença da volante.
E João Bonome não era coiteiro, sequer conhecia ou mantinha amizade com qualquer cangaceiro, não tinha, pois, nenhuma obrigação moral de manter o Capitão Lampião informado sobre o perigo que o rondava. Mas por que ele se dispusera a tanto sacrifício para chegar a tempo ao local do coito?
O ódio, apenas o ódio. Ou, somente para acrescentar, uma desenfreada ojeriza e aversão, revolta e repugnância que sentia pelos perseguidores de Lampião. Não que fosse a favor ou admirador do cangaço, pois até temia suas repentinas investidas pelas povoações sertanejas, mas não suportava mais ver tantas atrocidades praticadas pelos soldados.
Ele mesmo já tinha presenciado as consequências da desmedida violência. Encontrou seu vizinho Berdué pendurado de cabeça pra baixo numa baraúna, todo sangrando e sem um pedaço de língua sequer. Nunca soube os reais motivos, pois o homem enlouqueceu daí em diante, mas certamente porque não deu nenhuma informação sobre o paradeiro do Capitão. Era sempre assim.
Quando a polícia volante despontava na estrada o mundo parecia que ia acabar. Quem fosse encontrado tinha de cumprir com uma dívida logo cobrada. Tinha que dar dinheiro, entregar pertences, ser açoitado, e ainda assim sem certeza de continuar vivendo. Mas era pelos arredores, nos casebres mais afastados, que a desumana volante buscava suas vítimas de sangue. Dizer que nada sabia sobre o bando era pedir pra morrer. Mentir era pedir pra ser trucidado.
Tudo isso foi revoltando cada vez mais João Bonome. Então jurou a si mesmo que na primeira oportunidade iria dar o troco. Por isso mesmo que quando soube da presença da soldadesca na região não pensou duas vezes. Logo se meteu no meio do mato para alcançar o bando a tempo de o Capitão preparar uma emboscada bem feita pra macacada.
Só havia um problema. Por ali não havia nem sombra de Lampião e seu bando. Os cangaceiros estavam no oco do mundo, bem distante dali. Mas a raiva do homem era tanta que se danou assim mesmo. Sangrando no corpo inteiro, porém já insensível pela insanidade que logo lhe tomou o juízo, apenas seguia pisando em espinhos, lanhado de cima abaixo.
E seguiu e seguiu, como um vulto ensanguentado no meio do mato, avançando, correndo, caindo, levantando, sem jamais se cansar. Mas tombou. E ao avistar os urubus se aproximando disse suas últimas palavras: Seus covarde. Soldados não, vosmiceis parece urubu!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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Aprendi que não posso exigir o amor de ninguém...
Posso apenas dar boas razões para que gostem de mim...
E ter paciência para que a vida faça o resto...

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