Rangel Alves da Costa*
O fenômeno cangaço sempre se mostrou instigante em todos aqueles que por interesse investigativo ou curiosidade já lançaram um olhar sobre seu percurso histórico, contexto e acontecimentos. É deveras provocante, indagativo, pois à medida que se envereda nas suas trilhas mais se quer conhecer de seus escondidos. Por isso mesmo a afirmação de ser o cangaço a saga como mais revelações surgidas a cada dia.
Novos elementos da trama surgem a cada seminário sobre o fenômeno, a cada livro publicado, a cada tese defendida. Os historiadores não se cansam de vasculhar a história e, tantas vezes, ir além dos fatos por pura provocação. Ou lançar entendimento novo para questões tidas como resolvidas. Um redemoinho no cangaço, e do começo ao fim. Mas no centro dos debates geralmente as opiniões acerca do banditismo ou do heroísmo de Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião.
Quando as considerações se voltam para o caráter heroico ou bandido de Lampião ou mesmo para os seus aspectos comportamentais enquanto líder cangaceiro, logicamente que se discute apenas a face do cangaço enquanto bando atemorizando os sertões e desafiando o sistema legal vigente. Não há nenhuma preocupação em lançar um olhar para o cangaço como um todo, desde o clamor da terra sertão por justiça ao que motivou tantos homens a adentrar na difícil jornada.
Ora, nada surge ao acaso. Certamente nenhum daqueles rebeldes primitivos um dia cismou de brigar contra o mundo, deu um grito empunhando arma e foi acompanhado por tantos outros. Não foi por mera casualidade que homens se entrincheiraram nas caatingas e a partir daí começaram uma guerra sangrenta. As explicações e os entendimentos das reais causas ensejadoras do cangaço serviriam muito bem para afastar conclusões apenas pessoais e desarrozoadas. Avista-se a colcha do cangaço estendida, mas poucos têm o cuidado de procurar saber como e por que cada pedacinho foi sendo juntado.
É a compreensão do cangaço de forma generalizada, e não nas suas entranhas, que faz surgir partidarismos de todos os tipos e com os mais diversos objetivos. E logo se diz daquele bando de marginais que jogavam criancinhas para o alto e as esperavam na ponta do punhal, ou se afirma da justa luta dos cangaceiros contra os poderes opressores do sertão e do sertanejo. Ou ainda que Lampião não passava de um bandido cruel, feroz e sanguinário. E na defesa se afirma que o Capitão chamou para si a guerra que cabia a todo oprimido fazer. E por aí vai, com afirmações quase sempre exacerbadas ou distantes da realidade.
Certamente que nenhum daqueles homens das caatingas enveredou na luta inglória porque achava bonito viver na mira da volante, correndo constante risco de morte, tendo aos pés a incerteza da estrada. Certamente que o rapazote Virgulino não preparou nenhuma tocaia para o seu próprio destino. Seria dizer que o seu destino cangaceiro foi por ele mesmo semeado. E os fatos por trás disso tudo, por que tanto teimam em esquecer? Será que por desejo próprio ele forjou uma sangrenta situação para depois abrir caminho e mais tarde ser reconhecido como valente e destemido, e por isso mesmo reconhecido no bando de Sinhô Pereira?
O homem em si, o filho de Seu José Ferreira e Dona Maria Lopes, o companheiro de Maria Bonita, o pai de Expedita Ferreira, este nem sempre é compreendido. Acostumou-se com a visão mundana do homem sem se ater ao fato que ali também estava um ser espiritual, um indivíduo com alma e sentimentos. Sim, nele também residia a compreensão do sagrado e do pecado, do erro e do acerto, os limites do homem no mundo. Mas se poderia dizer então que um sujeito assim não cometeria tantas atrocidades. A resposta estaria na compreensão do sujeito enquanto produto do meio, principalmente quando o meio ou o embrutecia ou o submetia.
Mas o meio moldando o caráter de Lampião não foi somente aquele vivenciado quando decidiu ser cangaceiro, ou a partir de 1921, quando entrou para o bando de Sinhô Pereira, ou quando, mais tarde, assumiu o comando dos revoltosos. O meio desde o berço de nascimento nas terras de rixas e vinditas sangrentas de sua Vila Bela. Desde criança que Virgulino se rodeou de rivalidades, traições e todo tipo de violência. O rapazote logo foi forçado a partilhar dessa desdita sangrenta. Quando foi ser cangaceiro já estava marcado pelo ferro da opressão.
Contudo – e eis a grande verdade -, o Lampião não desumanizou Virgulino, nem este permitiu que aquele esquecesse o ser humano que havia dentro de si. Do contrário, acaso prevalecesse a ideia de que o homem nascido e crescido na violência tenderia a ser totalmente desumanizado, a grande maioria dos nordestinos não passaria de bestialidade em pessoa. Ora, naqueles idos chovia mais bala do que pingo d’água na região nordestina. E nem por isso o seu povo deixou de ser reconhecido pela fervorosa religiosidade.
Poeta e cronista
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