Rangel Alves da Costa*
Após a derrubada dos animais no curral do açougue, ainda na madrugada do domingo, o couro era estendido em estacas nos arredores à espera de outros donos. Seu destino não era outro senão ser transformado em selas, chapéus, botas, alpercatas, alforjes e todo um aparato de couro tão próprio no cotidiano sertanejo. Mas do couro fresco ao couro curtido um longo e cuidadoso processo devia ser observado.
O couro não podia ficar muito tempo exposto sob pena de apodrecer e por isso mesmo acabava sendo levado para cacimbas fundas nas lonjuras do riacho. E lá, sob a vigilância do tempo, permanecia alguns dias até que o coureiro fosse retirar sua preciosa matéria-prima. A fedentina pelos arredores era insuportável, pois o couro mesmo tratado continua com cheiro ruim, apodrecido. Mas foi com esse aroma indesejável que o sertão se preparou para vencer as dificuldades dos dias.
Brasilino, um dos maiores artesões do couro da região sertaneja, dizia que nada ou ninguém apanha mais que o couro até chegar ao ponto de ser trabalhado. Apanha de um lado e depois do outro, é prensado e revirado, até ficar na consistência requerida para o trabalho. Então o artesão cortava, media, batia, costurava, pregava, tudo cuidadosamente juntado, até surgir uma sela tão bonita quanto o próprio alazão, um chapéu tão sertanejo quanto o homem que o carregava debaixo do sol e da lua.
Desde muito tempo que uma verdadeira grife do couro foi reconhecida perante alguns dos mais diligentes artistas do couro. Não era qualquer um que recebia encomenda para dar vida àquelas suntuosas indumentárias cangaceiras, sempre cheias de adornos e costuras diferenciadas. Deveras a grande responsabilidade em trabalhar chapéus com formatos diferentes, ornados de estrelas e moedas de cobre e ouro, com desenhos e riscados que não podiam contrariar seus usuários. E também cartucheiras e embornais luxuosos. O couro certamente que era o mesmo, mas os enfeites eram entregues pelos emissários da cangaceirama: o coiteiro.
O coiteiro, quando não servindo ao conforto e estadia do bando, e também quando não enviado para missões junto aos poderosos da região, era pessoa comum como qualquer sertanejo. Dono de uma terrinha de casebre e malhada, ele assegurava a sobrevivência no ofício de lavrador, vaqueiro, coureiro ou qualquer coisa que lhe garantisse o sustento. Geralmente morando nos afastados das povoações, vivia em contato direto com a mataria e por isso mesmo conhecendo cada palmo de chão como as linhas da própria mão, e por isso mesmo tão importante à sobrevivência do cangaço. Sem ser cangaceiro, ainda assim primava pelo respeito e obediência a Virgulino Lampião.
Zé Caçuá era sertanejo de ofício mais que inusitado. Num tempo onde as estradas eram verdadeiras veredas e os carros eram raridades amedrontadoras sertões adentro, com viagens mais longas feitas nos lombos dos animais, carroças e carros de bois, ele costumava levar na cabeça, por cerca de quinze quilômetros, caixões vazios de defuntos. Morria um na beira do rio e então a ele era dada a incumbência de ir até a sede do município atrás da estranha encomenda. Dizem que mesmo durante a noite ele cortava estrada com aquela incumbência. E certamente não seria nada agradável de repente virar uma curva e encontrar Zé Caçuá com um caixão de defunto na cabeça.
Mas o danado do homem não fazia somente esse tipo de transporte. Qualquer coisa que precisassem na povoação e logo ele era enviado às pressas. Jamais montou num cavalo, burro ou jegue, pois tudo fazia andando apressadamente e carregando num canto da boca um cigarro de palha. Sua demora era pouca, pois chegava, procurava o encomendado, colocava na cabeça ou nas costas e retornava. Dependendo da necessidade, fazia o mesmo percurso duas ou três vezes ao dia. Mas certa feita não voltou. Foi encontrado morto no meio da estrada. E ao lado um caixão de defunto aberto. Mas pobre demais, sozinho na vida e na morte, acabou sendo enterrado envolto numa rede velha.
Numa casinha de beira de estrada morava Sinhá Zulmira. Caminhando meio encurvada pela idade, pois com mais de oitenta anos, morava sozinha desde que seu esposo morreu enlouquecido depois de uma seca de muitos anos. Após isso passou a sobreviver dos trocados que recebia com a venda de cocada branca, feita no tacho do quintal e oferecida numa banquinha colocada do lado de fora do casebre, debaixo de um umbuzeiro. Contudo, muitos ainda relatam que o sucesso da cocada de Sinhá Zulmira não estava na gostosura do doce, mas pelo que vinha acompanhada.
O acompanhamento era uma caneca d’água, apenas isso. Mas aí o grande segredo. Água coada, adormecida em moringa no sereno da noite, parecia gelada diante do calorão sertanejo. E também a limpeza da caneca de alumínio. Constantemente lavada com folha de juá e esfregada com areia, reluzia no brilho do sol. Depois de se fartar da cocada, o viajante se enchia de contentamento diante da quartinha e da caneca. E muitos aproveitavam a ocasião e ali mesmo tiravam um cochilo no sombreado do umbuzeiro.
Poeta e cronista
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