Antes e depois: paraíso do surfe está tomado pela lama (Foto: Bocana Surf Camp e Fernando Madeira)
No pequeno vilarejo de Regência, com 1.200 habitantes, no litoral do Espírito Santo, está uma praia de ondas tubulares e perfeitas, também conhecidas como as "primas de Bali". Nas ruas de areia e terra batida, os moradores caminham descalços, de bicicleta ou a cavalo. A comunidade situada na área da reserva ecológica de Comboios, onde fica a foz do Rio Doce, sempre viveu do surfe e da pesca. Mas o futuro do "Havaí Brasileiro" está ameaçado por uma das maiores catástrofes ambientais da história do país. A lama com rejeitos de minério oriunda do rompimento de uma barragem da Samarco, em Mariana-MG, chegou ao oceano e está acabando com um dos melhores locais para a prática de surfe no Brasil.
- Regência é uma das pérolas, uma das joias brasileiras do surfe. Estou chocado. Olhar essas imagens dá um nó na garganta. É algo que vai atingir outros estados, e a gente não sabe nem por onde começar. Tudo vai depender das correntes, mas esse mar de lama pode chegar ao litoral do Rio de Janeiro e da Bahia. Não sabemos ainda quanto tempo vai demorar a decantar no mar. Isso me faz lembrar de uma frase de um tal de JC (Jesus Cristo): "Pai, perdoa, eles não sabem o que fazem" - lamentou Teco Padaratz, bicampeão mundial do QS (Divisão de Acesso).
Protesto com pranchas de surfe nas redes sociais (Foto: Reprodução/Twitter)
O surfista Krystian Kymerson, campeão do SuperSurf 2015 e que tem a praia como seu quintal, está revoltado. No último sábado, já em um prenúncio do que estava por vir, foi realizado o evento "O último dia antes do fim", no qual os locais surfaram em meio à lama e se despediram do pico.
- Fico chateado com essa situação que está rolando em Regência. Não poder treinar nas melhores ondas do Brasil. É triste. Essa lama veio para estragar o pico. Eu surfo em Regência desde os 15 anos de idade. Gosto muito de treinar lá. São ondas tubulares, que gosto muito. Agora, vai ficar meio difícil treinar lá com essa situação. Fico vendo as fotos, é chocante ver isso que aconteceu. Dá até raiva de falar. Agora só vamos ficar ouvindo falar que Regência tinha altas ondas e não vamos poder surfar mais. É revoltante - desabafou Kymerson.
A prefeitura de Linhares interditou as praias de Regência e Povoação e espalhou placas avisando que os locais estão impróprios para o banho. A água barrenta que se alastra pelo mar azul e praias preservadas da região provocou a morte de centenas de peixes e já tem surtido efeito no turismo da região. Tartarugas marinhas protegidas pelo Projeto Tamar em Regência também estão ameaçadas. Boa parte das pousadas teve suas reservas para o fim do ano canceladas. Marcely Fraga, gerente da Pousada Bocana Surf Camp, perto da Boca do Rio, em Regência, contou que o clima na região é de desespero.
- Regência é uma vila onde a maioria da população se sustenta da pesca e do turismo, onde as ondas são internacionalmente conhecidas, recebemos surfistas profissionais o ano todo. Agora o que se vê na vila são pescadores desolados, sem saber para onde ir, donos de pousadas que investiram todo dinheiro para receber os turistas no Ano Novo estão apavorados com ligações de cancelamentos de reservas. Acabaram com o paraíso! Destruíram não só a natureza, mas os sonhos e sustento da vila inteira - disse Marcely.
Ainda é cedo para apontar as consequências do impacto ambiental provocado pelo rompimento da barragem da Samarco. Um desastre sem precedentes, segundo o oceanógrafo Eric Mazzei, residente em Regência. Ele afirma que o trabalho para a retirada dos rejeitos de minérios provocará uma mudança estrutural no ambiente, alterando o fluxo do mar e as correntes, o que pode provocar a extinção das ondas tão apreciadas por surfistas de todo o mundo.
- O estrago é sem precedentes. Já gerou tanta morte e destruição e ainda tem muita coisa por vir. O entendimento pleno do que está acontecendo virá depois. Eu, que sou técnico e vejo o desequilíbrio, é uma perda catastrófica, não tem dinheiro que pague. Não tem como remediar. O que estamos nos mobilizando é para repor a dignidade e dar uma oportunidade para as pessoas continuarem a vida delas - lamentou Mazzei.
- Hoje, o surfe acabou. Se vai voltar? Não sei. Só vai ter surfe em Regência se tiver a recuperação como um todo do ambiente. Ninguém pode entrar na água. Se entrar, vai ser acreditando em laudos de governo, laudos desse tipo, que irão dizer se a água está contaminada ou não. Vão ter que dragar as praias, o fundo do rio, tudo para tirar esses sedimentos. Esse é o grande risco. Fazendo isso, vai mudar a bancada, o fluxo do mar, as correntes, e não dá para saber o que vai ser. A praia precisará ser artificialmente trabalhada para que possa voltar a ter a mesma topografia aquática de antes. Só Deus sabe o que vai acontecer - acrescentou.
- Hoje, o surfe acabou. Se vai voltar? Não sei. Só vai ter surfe em Regência se tiver a recuperação como um todo do ambiente. Ninguém pode entrar na água. Se entrar, vai ser acreditando em laudos de governo, laudos desse tipo, que irão dizer se a água está contaminada ou não. Vão ter que dragar as praias, o fundo do rio, tudo para tirar esses sedimentos. Esse é o grande risco. Fazendo isso, vai mudar a bancada, o fluxo do mar, as correntes, e não dá para saber o que vai ser. A praia precisará ser artificialmente trabalhada para que possa voltar a ter a mesma topografia aquática de antes. Só Deus sabe o que vai acontecer - acrescentou.
Krystian Kymerson surfando em Regência antes da catástrofe ambiental (Foto: Cristiano Pena)
A Praia de Regência apresenta diferentes condições para a prática do surfe. A foz do Rio Doce traz um maior volume de água que torna as ondas pesadas. Além das mais curtas e lisas, que quebram para a esquerda e direita e lembram até as de Puerto Escondido, no México, os surfistas também encontram as longas e tubulares. O acesso ao local é restrito. Para conhecer o paraíso escondido, a cerca de 120km da capital Vitória, é preciso viajar pela rodovia BR-101 e ainda andar 32km por uma estrada de terra.
- Regência tem ondas muitas boas. Tem essa na boca do rio, que é muito longa e pode ser comparada à Indonésia nos dias bons, uma das melhores ondas do Brasil. Um pouco mais para a direita, mais para o meio da praia, tem outra onda muito boa também, tubular. Acho que essa catástrofe acabou com duas ondas incríveis a nível internacional. Mas não foi só o surfe que acabou, a vida marinha também. Tinha uma tartaruga de couro que só tinha ali... É uma coisa muito séria, pior do que as pessoas imaginam - explicou o big rider Pedro Scooby.
Lama oriunda de rompimento de barragem em Mariana (MG) chega ao oceano (Foto: Marcelo Carnaval/ O Globo)
O mundo do surfe se manifestou diante do desastre ambiental. Tops da elite do surfe mundial como Adriano de Souza, o Mineirinho, Wiggolly Dantas e Filipe Toledo usaram as redes sociais para postagens que mesclavam preocupação e revolta.
- Não tive a oportunidade de surfar em Regência, mas tenho muitos amigos do Espírito Santo que sempre surfavam lá. Mas, além da impossibilidade do surfe naquela região, acho que o problema é a destruição total do ecossistema daquela área. Todo o berço de reprodução, que cerca a desembocadura do Rio Doce, foi destruída. Aliás, transformaram o Doce em amargo. Apenas queria citar uma frase que li e achei muito interessante, de um pescador local: "Se algum pescador fosse pego pescando na época da reprodução da piracema, certamente ele iria preso! Mas e quem destrói o rio todo? O que acontece com ele?". Além de ser o único lugar onde desova a tartaruga de couro, no Brasil - disse Filipinho, vice-líder do ranking e um dos principais candidatos ao título na última de 11 etapas do Circuito Mundial, em Pipeline, no Havaí.
Campeão mundial na remada e no tow in, Carlos Burle chamou a atenção para a necessidade de uma reflexão mais profunda. Apesar de nunca ter surfado no local, o pernambucano sempre teve um carinho pelo que via de Regência em fotos, filmes e documentários.
- Estou arrasado, muito triste. Infelizmente, estamos vivendo um momento onde vemos que existem consequências sobre as atitudes dos seres humanos. Precisamos entender que vivemos em um mundo só e trazer uma mudança profunda nos nossos valores. O ser humano busca o "ter", o conquistar. Precisamos criar outros valores, criar o prazer em coisas que não sejam materiais. É necessária uma reflexão da nossa existência, onde queremos chegar e qual o legado iremos deixar para o futuro.
REPERCUSSÃO INTERNACIONAL
A situação das praias de Regência e Povoação também virou assunto internacional. No site "Surfing Maganize", a publicação repercute a desastre ambiental como "A morte da onda perfeita" e pede que os leitores nunca deixem algo parecido acontecer novamente, "que é preciso ter certeza que as ondas serão salvas para a próxima geração". O site também critica o valor liberado pela Samarco para revitalização da catástrofe. Segundo eles, "o número parece minúsculo em comparação com a quantidade de dano feito".
Scooby lamenta mar de lama em um dos melhores lugares para a prática de surfe no Brasil (Foto: Reprodução/Facebook)
Wigooly Dantas desabafa com chegada da lama ao litoral do Espírito Santo (Foto: Reprodução)
Filipe Toledo lamenta sobre desastre ambiental em sua conta no Instagram (Foto: Reprodução/Instagram)
Por Carol Fontes e Thierry GozzerRio de Janeiro e Brasília
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