Rogério Ceni é o São Paulo: 1.237 jogos, 978 partidas como capitão, 623 vitórias, 131 gols e títulos, títulos, títulos... Mas a conquista da Libertadores de 2005 é especial para ele e para a torcida tricolor. Saiba por que neste filme. E leia mais em uma entrevista exclusiva.
por Alexandre Lozetti e Diogo Venturelli
“Eu gostaria de ser dono do São Paulo”
Rogério, você é chamado de mito, mas antes de o São Paulo ganhar tudo, você já era ídolo. Tentamos identificar o momento dessa transição, de ídolo para mito, e nos lembramos do título da Libertadores, em 2005, quando você faz gestos com a mão e diz à torcida que “acabou”. O que acabou ali? Ali você virou mito? O que simbolizou aquele gesto?
Eu havia vivido 12 anos antes a conquista da Libertadores como segundo goleiro do São Paulo. E sempre tive vontade de viver e contar essa história de outra maneira. Quando eu falei que tinha acabado, é porque já tínhamos ganhado o Rio-São Paulo, a Copa Conmebol, eu já era tricampeão paulista, mas colocavam como títulos menores, sem tanta importância. A Libertadores era o que de mais importante podia acontecer. Eu me senti com dever cumprido. Passamos 12 anos sem conquistar a Libertadores, e 10 anos sem jogar. Era muito frustrante para o torcedor não ver seu time numa competição que ele aprendeu tanto a admirar. Naquele momento, eu achei que se concluía um ciclo. Tínhamos acabado de ser campeões paulistas, fomos campeões da Libertadores e ainda havia algo maior naquele ano, o Mundial. Não falei “acabou” pelo mito, por essa palavra, mas pelo alívio de ter chegado ao ponto máximo que um atleta podia chegar.
Você falou “acabou”, mas estava só começando. Foi grandioso o que veio depois, não?
Nos anos seguintes à conquista da Libertadores, acho que passou do limite que era natural para determinado atleta ganhar. O Mundial da maneira como se deu, o tricampeonato brasileiro sendo capitão do time, eleito duas vezes o melhor jogador do campeonato, podendo erguer por três vezes consecutivas o troféu. Tinha muito tempo que o São Paulo não ganhava o Brasileiro, desde 1991. Ali massificou muito a relação com o torcedor. Muitos recordes foram quebrados: atleta que mais jogou pelo São Paulo, gols, enfim, recordes importantes que, juntamente às conquistas, ajudaram a fixar e fortalecer essa imagem com o torcedor.
Mas eu gostaria de entender por que essa empatia foi criada desde muito cedo, quando você ainda era reserva do Zetti a torcida já gostava de você. De onde veio isso?
Porque eu nasci no São Paulo e porque eu sou São Paulo. Isso é o mais importante quando você entra em campo. O torcedor conhece muito o jogo, sente o jogo, e o sentimento mostrado sempre foi muito verdadeiro. “Será que aquele cara vai sair ano que vem?” Não, vou estar aqui! Os contratos sempre foram renovados com períodos longos, eu vislumbrei o próximo jogo, o próximo campeonato, a próxima conquista. Essa identificação, além de todo o tempo que trabalhei aqui, construiu a relação do fã com o ídolo. Ver no olhar do cara que ele queria aquilo, mesmo depois de ter sido tricampeão brasileiro, o torcedor sempre via a obstinação de vencer. O modo de dar uma entrevista, defender o time, faz com o que o torcedor incorpore você dentro de campo. Há as conquistas, os gols, as defesas, mas a fidelidade de tantos anos consecutivos e o desejo de vencer a cada jogo fizeram com que houvesse essa simbiose, essa química com o torcedor são-paulino.
E normalmente só se cria uma empatia quando há títulos, principalmente no Brasil, não é?
O futebol brasileiro é muito cíclico. Desde que eu me lembro mais, houve o Flamengo da década de 80, com grandes títulos, passa pelo São Paulo do início dos anos 90, o Palmeiras na época da Parmalat, o Corinthians numa fase boa. Não existe uma equipe que se mantenha. É diferente da Alemanha ou da Espanha, em que entra ano, sai ano, é sempre a mesma equipe brigando. O São Paulo veio de ser campeão brasileiro em 91, ganhou Paulista, Libertadores e Mundial em 92, Libertadores e Mundial em 93, e, quando perdeu a Libertadores de 94 para o Vélez, começou a terminar aquele ciclo de alta. Ainda teve a Conmebol de 94, último suspiro. Quando assumi a posição de titular, em dezembro de 96, vínhamos de dois anos muito ruins. 1997 foi complicado, em 98 conseguimos o título paulista, mas o time só se encontrou novamente num ciclo de alta a partir de 2004. Teve um período de conquistas entre 2005 e 2008, e 2009 foi o limite, quase chegamos. Depois, mais um período de baixa por medidas erradas que aconteceram também fora de campo.
“Eu nasci no São Paulo e eu sou São Paulo. Isso é o mais importante quando você entra em campo. O torcedor sente o jogo e o sentimento mostrado sempre foi muito verdadeiro”
Qualquer pessoa que fique cinco, oito, dez anos num emprego, passa a se envolver de uma maneira mais pessoal. Você passou 25 anos no São Paulo, com um alcance quase surreal, sendo ídolo, uma figura representativa. Que espaço você ocupa no clube? Chega a sentir, em alguns momentos, como se isso fosse um pouco seu?
Sim. Eu gostaria de poder ser dono do São Paulo. Gostaria que todos os times tivessem um dono para que não houvesse coisas como aconteceram aqui recentemente. Para que fosse mais profissional, como no futebol inglês, com mais organização e responsabilidade. Como isso não vai acontecer, primeiro por eu não ter dinheiro, e pelo futebol brasileiro não ser como é na Inglaterra, só torço para que pessoas boas assumam o clube, com boas intenções, como era num passado um pouco mais distante. Para mim, essa relação é tão maior, que cansei de sair de casa num domingo de folga e, automaticamente, pegar o caminho do CT. No meio do caminho, eu me lembrava para onde queria ir. Não foram poucas vezes. Saí de casa para ir a um lugar e, distraído, segui o mesmo caminho que faço há 25 anos. Infelizmente, tudo tem um final. O caminho vai ser mudado, o carro vai ter que se acostumar a ir para outro lugar. Isso aqui para mim está longe de ser um emprego. Sou remunerado, claro, mas não encaro há muitos e muitos anos como um emprego. Encaro como a extensão da minha casa, da minha vida particular. É tão importante quanto foram as coisas mais íntimas e bacanas da minha vida.
E por não encarar como um emprego, você agiu muito...
Sempre. Fiz meu melhor dentro de campo, e no pré-jogo tentei motivar muito meus companheiros. Acho importante com palavras do coração antes de entrar em campo ou tentando mostrar dia a dia nos treinamentos, com dedicação diária, jogando sempre como se fosse o último jogo. Acertar e errar faz parte. Perder um gol na linha da pequena área ou sofrer um gol defensável é parte do jogo, e temos que absorver porque é do ser humano. Mas eu sempre quis que cada um desse seu melhor, deixasse o máximo dentro de campo. O maior legado é encontrar na rua, e encontro muita gente que diz: “Meu filho virou são-paulino por sua causa” ou “meu filho é goleiro por sua causa”. Ou encontrar com gente de mais idade que se emociona. O maior legado é ver o crescimento do torcedor nos últimos anos.
Esse discurso de antes dos jogos foi se aprimorando ao longo do tempo...
(interrompe) Não fui me aprimorando. Você adquire conhecimentos, lê, vê, assiste e amadurece. Um discurso de quando eu era capitão em 2002 é diferente de hoje. São 10 ou 12 anos de conhecimento de vida adquirido. Procuro ver coisas bacanas de atletas e treinadores de ponta, pessoas que sejam referências em outras áreas, depoimentos válidos para a vida, e adaptá-los ao campo de jogo no que sinto ser positivo. Mas é difícil criar 900, 950 discursos diferentes e motivadores para o atleta entrar em campo. Tento até hoje fazer isso. Tuas próprias experiências fazem com que haja sempre novas histórias para contar, novas maneiras de ver a vida. Quando eu tinha 20 anos, via as coisas de outra maneira. Por tudo que passei, posso dar um depoimento melhor aos 40. Vinte anos de experiência no futebol e na vida ajudam muito o ser humano a amadurecer.
Um líder tem que se expor. Não pode ver determinadas coisas sem tentar interferir. Como você lidou com essa exposição necessária para quem preenche esse espaço num grupo?
Não acho que eu seja líder. Muita gente gosta de falar “eu mandei”. Quem decide não precisa disso, as pessoas escutam porque querem, acham que vale a pena, ou simplesmente não escutam e você acaba perdendo espaço. Essa liderança é extremamente natural e sempre dei liberdade para que qualquer um falasse antes dos jogos. Nos últimos dois anos, eu dei a faixa de capitão a um ou outro jogador. Rodrigo Caio, Lucão, Alvaro Pereira, pessoas que querem muito ganhar, que se dedicam. Há a qualidade técnica, que acho importante, do Ganso, por exemplo. Eles vão se adaptar e vai ter que surgir alguém que assuma essa responsabilidade. Esse sempre foi meu jeito. Há 20 anos eu não conseguia me relacionar tão bem com as pessoas porque eu achava que todo mundo tinha que ser do jeito que eu era. Com o passar dos anos, vi que você pode obter resultados compreendendo que cada ser humano tem reações diferentes. É preciso compreender e entrar no mundo das outras pessoas para fazer com que sua palavra chegue, mesmo que não tenham o mesmo pensamento ou não dediquem tanto tempo da vida preocupadas com o futebol. Tem gente que leva isso aqui numa boa, aceita muito mais fácil ganhar ou perder, conquistar ou não. Acho que vivem até melhor, falando honestamente. Eu sempre tive uma dificuldade muito grande de aceitar derrotas. Aprendi a me comportar melhor mesmo nas derrotas, tentando incentivar ou mesmo cobrar de uma maneira aceitável por todos.
“Não acho que eu seja líder. Muita gente gosta de falar 'eu mandei'. Quem decide não precisa disso. As pessoas escutam porque querem e acham que vale a pena”
Você disse que essas pessoas vivem melhor. Depois de 25 anos passando por isso, pode-se dizer que você perdeu saúde no futebol?
Muita. O esporte de alto rendimento não é saudável, você tem que ultrapassar limites normais de conforto, diferente da pessoa que corre todo dia na academia e se mantém em boa forma. Você ultrapassa limites de dor, perde muito tempo da vida trancado numa concentração. Dos 17 aos 42 anos de idade, passei de três a quatro dias por semana numa concentração. Então perde muita coisa da vida de um jovem, adolescente. Há lesões e a pressão com a qual você lida todos os dias. No seu emprego, você se senta na sua mesa e seu chefe cobra uma boa matéria, uma boa pergunta. E você é avaliado pelas pessoas que lá trabalham. Nós somos avaliados, no mínimo toda quarta e domingo, por milhares que vão ao estádio e milhões que acompanham pela televisão. Para todo fato há no mínimo duas verdades. Uma matéria negativa tem mais visibilidade, é muito difícil lidar com tudo isso. Desgasta muito psicologicamente.
Já se falou tanto sobre seu primeiro gol: o quanto você treinou, por que começou... Você considera aquilo, o fato de sair do gol e bater faltas, um ato de coragem?
Acho que foi o diferente, a audácia naquele momento em que ninguém no futebol brasileiro falava em bater faltas. Foi um pouco do acaso... Os meninos que subiram comigo da base se dissiparam pelo Brasil, emprestados ou abandonando. E o Telê sempre cobrava para chegar meia hora mais cedo. Em 94, ele mostrava os campeões mundiais chegando 10 minutos antes, se trocando e indo para o campo. Naquela época, a preparação física era muito diferente. Não se tinha o conhecimento de hoje. Eu chegava meia hora mais cedo e, com dois ou três jogadores em campo, já começava chute a gol sem aquecer. Ele batia aquela bola rasteira, cruzada, e tinha que se virar. Às 9 horas, eu estava cansado, sem alongamento e aquecimento, mas era o conceito da época. E como eu ia dizer não pro Telê (risos)? “Não vou porque estou frio”? Quando se tem 18, 19 anos, vai frio, quente... Aos 42, se eu fizer isso tenho uma lesão antes de começar o treino. Ele dizia: “Quando você for mais velho, continue chegando meia hora mais cedo”. Foi o grande segredo que segui. Hoje eu não entro meia hora mais cedo em campo, entro uma hora e meia mais cedo na fisioterapia para poder jogar.
Ok, nessa meia hora você treinou, treinou, treinou... Mas além do treino, era preciso coragem? Hoje é normal, mas há 18 anos parecia bem desafiador.
Acho que sim. Acho que eu nem tinha capacidade, honestamente, mas treinei tanto que passei a ter. Eu não tinha o dom, mas repeti tantas vezes que até eu me convenci que tinha capacidade de fazer. E aí houve duas pessoas muito importantes no processo. O (Roberto) Rojas (preparador de goleiros na época) foi um incentivador muito grande para eu continuar a treinar, e o Muricy (Ramalho, técnico na época) por correr o risco. Ele autorizou, eu tinha 23 anos, ninguém passaria por cima da ordem de um treinador. Se ele dissesse que eu não iria bater faltas, fazer o quê? Foi um momento impulsivo. Um pouco antes de o Zetti ir embora, eu falei pra ele que ainda faria um gol de falta no São Paulo. Juntando desejo, vontade, um pouco de loucura, o incentivo daquelas pessoas, a permissão do treinador, a oportunidade. E se eu passasse um mês sem fazer o primeiro gol... A imprensa era meio a meio. 50% achavam legal porque era diferente, notícia, e metade dizia: “Goleiro vai querer fazer gol de falta?”. Na segunda ou terceira falta que bati, fiz meu primeiro gol, e aí quebrou-se um paradigma, mudou-se o conceito, e me senti respaldado para continuar tentando. Fora o ciúme dos camisas 10, 8, os batedores de falta naturais.
Você sentiu hostilidade de outros jogadores?
Abertamente não, mas era notório. E acho completamente normal e aceitável. O futebol era bem diferente há 18 anos.
“Tem gente que leva isso aqui numa boa, aceita mais ganhar ou perder, conquistar ou não. Acho que vivem até melhor. Eu sempre tive uma dificuldade muito grande de aceitar derrotas”
Você disse acima que teve um pouco de loucura na decisão de bater faltas. Você é louco?
Cara, eu me considero uma pessoa bem centrada. Mas quando se é mais jovem, tem mais ímpeto, mais coragem. O Telê falava dos carros (o técnico aconselhava os jogadores a não gastarem dinheiro em automóveis), mas com seu primeiro dinheiro você quer um bom carro, você ousa, parcela em 36 vezes, vai e compra. Eu era muito mais corajoso aos 20 anos do que aos 40. Hoje, para comprar um carro, penso três vezes: vou andar com meu carrinho normal porque está acabando, você perde a coragem para novos investimentos. Aos 20, você não pensa muito, faz por impulso, natureza. Talvez eu esteja falando besteira, mas eu era mais empreendedor. Deveria ser o contrário porque hoje tenho uma vida mais estabilizada. Arrisquei bastante, mas não era louco, não fiz loucuras. Sempre fui bem tranquilo. Nunca bebi, e não vejo problemas em quem bebe, desde que não atrapalhe o trabalho. Nunca fui de sair para a noite. E não foi pelo futebol que deixei de fazer isso, nunca gostei. Não era a minha. Sempre gostei de menos pessoas em volta, fui um cara bastante reservado. Isso ajudou a me condicionar. Aos 36, 37 anos, pensei no que eu poderia fazer para prolongar a carreira. Montei uma academia dentro de casa para trabalhar fortalecimento muscular à noite. Tentei investir o máximo em mim mesmo para chegar o mais longe possível.
Você disputou a final contra o Liverpool com uma lesão no joelho, tanto que logo depois fez uma artroscopia. Ela te limitou durante o jogo ou a adrenalina do jogo impediu as dores? Houve risco real de você não jogar a partida mais importante da sua vida?
Quanto mais próximo do fim do jogo, mais dor eu sentia, e era completamente natural porque não treinei no dia anterior. Foi uma fatalidade. Fui treinar faltas dois ou três dias antes do jogo, e num movimento que fiz para bater, a perna de apoio, a esquerda, deu um estalo. Eu já havia feito duas cirurgias de menisco no joelho direito e, pelo conhecimento da lesão, procurei o Marco Aurélio (Cunha, superintendente de futebol naquela época e médico), que é especialista em joelho. Ele fez a manobra e falou: “Não, isso aí você faz um fortalecimento muscular”. Ele queria, psicologicamente, tirar o peso da lesão, e eu entendi que ele precisava fazer isso porque, além de bom médico, é um cara que entende bem o atleta. Mas eu sabia que tinha lesão de menisco, e meu medo, além da dor, era travar. Algum fragmento entrar na articulação, travar o joelho e me impossibilitar de jogar. Era muito frio no Japão, estava gelado. No treino da véspera, o Raí participou do rachão e aquilo cortou meu coração porque eu adorava participar na linha. Naquele dia me segurei. No dia do jogo, fiz só o treino básico, uma movimentação leve com o Haroldo (Lamounier, preparador de goleiros que trabalha com Ceni até hoje), que já estava comigo há dois anos e me conhecia bastante. Mais perto do final, eu senti mais dor porque o corpo estava esfriando. Com o corpo quente você vai embora.
Mas o Liverpool permitiu que você esfriasse naquele jogo?
Nos últimos minutos a bola passou muito perto, mas não fiz defesas. Se fosse para a prorrogação seria difícil levar mais 30 minutos. Foi fantástico. Não seria fácil levar pela condição física e (risos)... A única certeza que tenho é que se o Liverpool empatasse aos 48 do segundo tempo, não teríamos condições de segurar mais 30 minutos. A parte psicológica desmoronaria com o gol sofrido.
Quando acaba o jogo, todos os jogadores, titulares e reservas, correm em sua direção. Você notou? Era um agradecimento por sua atuação?
Eu não me lembro se o primeiro foi o Cicinho ou o Lugano. Acabou num tiro de meta, na viagem da bola. Um deles me abraça e aí vem todo mundo, instintivamente. Todos mereciam aquele abraço, mas o Mineiro foi o responsável pelo único gol. Foi uma atuação acima da média devido à importância, talvez por eu ser o mais velho, o capitão. Minha grande participação nesse jogo foi na parte psicológica, a palestra antes de entrar em campo, a motivação. Talvez meu maior mérito tenha sido, mesmo com dúvidas, fazer com que os caras ao meu lado acreditassem que era possível ser campeão do mundo, mesmo com o Liverpool sem sofrer gols há 11 jogos e sem perder há 18. Entendo que, naquele dia, a função do cara que usava a braçadeira de capitão era fazer os caras acreditarem, mesmo tendo que olhar pra cima na entrada do campo porque eles eram mais altos que nós. E para mim, o mais importante foi a palestra do Paulo (Autuori, técnico na época) na noite anterior. Eu tinha um pensamento até depois do lanche das 10 da noite, e fui dormir com outro.
“Eu era muito mais corajoso aos 20 anos do que aos 40. Hoje, para comprar um carro, penso três vezes porque está acabando. Aos 20 você não pensa muito, faz por impulso, natureza”
Quando você está falando antes dos jogos, motivando, você percebe o efeito que suas palavras têm nos jogadores?
Claro, em cada um, o que atinge cada um, a quem você atinge e quem não. Quem se emociona mais. No Brasileiro de 2008, o jogo contra o Goiás (vitória por 1 a 0 que deu o hexacampeonato ao São Paulo), preste atenção no rosto do Hernanes, e você entenderá o significado da palavra porque é o momento que cada um atravessa na vida, ás vezes até pessoal. Quando consegue tocar aquela pessoa, ganha um cara muito mais disposto a deixar a vida em campo pela vitória. É claro que não se consegue atingir a todos, principalmente com a mesma intensidade, mas se contagiar três ou quatro, isso pode fazer diferença.
Outro momento especial: o gol 100 contra o Corinthians. Foi a primeira oportunidade depois do 99, num clássico, numa posição não tão favorável assim e numa época em que seus gols eram bem mais raros. Com essa soma de fatores, pode se concluir que você é também um predestinado?
Sim. Sem dúvida. Era um gol com percentual baixo de chance de acontecer pelo posicionamento e pela angulação da falta. Não era frontal, a distância não era curta. Mas era o único clássico. Vínhamos de jogos menores e depois também seriam jogos menores. Acredito que o destino trabalhou a favor. Por ser um adversário tradicional, um clássico do futebol brasileiro, uma rivalidade, o feito teve relevância maior. Foi o destino, aquilo foi o destino.
Talvez, o torcedor se sinta um pouco órfão ao olhar para o gol do São Paulo depois de 19 anos e não ver sua imagem. Como você acha que vai se sentir quando enxergar outro goleiro no gol do São Paulo, de maneira definitiva?
Eu saí de casa muito cedo e quando voltei não vi mais minha mãe porque ela já havia falecido. Saí de casa aos 17 e perdi minha mãe aos 20. E aos 42 estou perdendo a... (Rogério interrompe a fala e chora) a outra grande parte da minha vida. Mas vendo caras como eu vi o Raí, por exemplo, entendo que será uma coisa completamente natural e superável. A vida segue para todo mundo. É natural que você se sinta triste por não dar sequência àquilo que fez a vida inteira, mas ninguém é insubstituível. Superamos todas as dores da vida, inclusive a perda de uma mãe. Graças a Deus, o clube é tão grande que outros ídolos surgirão como foi o Raí na década de 90, como foram Pedro Rocha, Canhoteiro, Careca e tantos outros que fizeram esse clube ser tão grande. Eu me sinto triste pela lembrança momentânea, mas muito feliz porque fiz meu melhor durante todos esses anos, e com a certeza absoluta e tranquila de que ninguém é insubstituível. Com a certeza de que daqui a um ou dois anos nascerá, talvez em outra posição, alguém que vai suprir essa coisa da liderança. É difícil para você mesmo ou os fãs mais fervorosos aceitarem, mas é um ciclo da vida completamente natural. Surgirão novos ídolos, novos líderes, o São Paulo será campeão de novo, o torcedor vai sorrir de novo, vai comemorar títulos importantes, vai ser tetracampeão da Libertadores e mundial, são as certezas que eu tenho. E que, naquele período, fiz parte da história de um grande clube como é o São Paulo.
Você citou alguns jogadores...
(interrompe) E eu até não gosto de citar nomes porque você vai se esquecer de Muller, Palhinha, Pintado, Ronaldão, Dinho, Zetti, Waldir Peres, Roberto Dias (risos)... Gente que eu vi jogar. Serginho, maior artilheiro da história do São Paulo, enfim... Outros muitos, Lugano, Mineiro, Josué, Danilo. Se eu ficar aqui o tempo todo, vou me esquecer de alguém.
“Minha grande participação na final do Mundial foi na parte psicológica. Talvez, meu maior mérito tenha sido, mesmo com dúvidas, fazer com que os caras ao meu lado acreditassem que era possível ser campeão do mundo”
Mas você é maior do que todos esses citados?
Se eu sou maior? Eu não sou maior do que ninguém. Eu apenas joguei durante todos esses anos fazendo meu melhor, tive mais tempo do que a maioria deles, mas não me sinto maior do que nada nem ninguém. Eu me sinto convicto de que, no tempo em que estive aqui, fiz o melhor que pude em todos os sentidos. Se houve um lado da vida em que me dediquei de corpo e alma foi o profissional. Perdi, ganhei, acertei, errei, mas sempre convicto. Deixo o futebol assim, extremamente tranquilo por ter me dedicado ao máximo até o último dia da minha carreira.
Você agradeceu a Deus. A religião sempre foi algo com o qual você conviveu intimamente, sem grandes demonstrações. Como lida com isso?
Eu acredito em Deus e acho que para tudo existe um propósito. Agora, acho que todo mundo tem sua crença e sua religião. Deus não dá a vitória, seria injusto, ele estaria tirando a vitória de outro. Acho que Deus lhe propicia saúde, é isso que agradeço todos os dias. Mas não consigo acreditar que Deus dá a vitória para um em detrimento de outro. Acho religião uma coisa muito particular e delicada. Eu sou católico, acredito em Deus, agradeço por tudo que ele propiciou na minha vida, mas não acho que Deus joga, que Deus entre em campo. Acho que a oportunidade a gente deve agradecer sempre, vir aqui, fazer um teste e passar, tanta gente gostaria e você teve. Mas dentro do jogo vai muito do teu time, de você individualmente, do teu merecimento profissional. Deus não pode jogar para um time e não jogar para outro.
foto: MARCOS RIBOLLI
Você já sabe o que vai fazer no ano que vem?
Não está claro, mas alguma coisa vamos fazer.
Você ainda é jovem...
Não para o futebol, Mas para alguma coisa futura sim. Alguma coisa boa vai ter, eu só sei que quero descansar por 45 dias.
“Eu saí de casa muito cedo e quando voltei não vi mais minha mãe porque ela já havia falecido. Saí de casa aos 17 e perdi minha mãe aos 20. Aos 42, estou perdendo a outra grande parte da minha vida”
Só?
Só. É o que eu quero. Quero voltar a pensar em alguma coisa a partir de fevereiro. Acho um bom tempo. Em 45 dias, quero tentar me desligar de tudo, televisão, tudo. E depois retomar algumas coisas como projetos de licenciamento de produtos, área de palestras. Palestra dá bastante dinheiro, né (risos)? Tem uns caras ganhando bastante dinheiro com palestra. Espero trabalhar e tentar ser próximo do que fui e me dediquei como atleta, tentar fazer algo bem feito.
Desistiu de ser técnico?
Não desisti, mas pela experiência do tempo, vejo que o risco começa a ser muito grande. Se fosse no São Paulo, qualquer coisa futura, eu gostaria de ser alguma coisa que eu pudesse decidir, fazer com as minhas convicções, do meu jeito, com as pessoas com quem aprendi ao longo dos anos. Se não for dessa maneira, prefiro continuar na torcida, na televisão e na arquibancada. Tenho meu jeito de ver, aprendi muito com grandes treinadores que passaram por aqui, e até com aqueles que não foram tão bons. Aprendi coisas que se deve e não deve fazer. Acho que eu teria sucesso, mas não sei se seria um risco muito grande com outras opções que tenho para o futuro.
Neste momento, cerca de 20 milhões de pessoas te agradecem.
Ah não, eu é que tenho a agradecer a todos que frequentaram o Morumbi durante todos esses anos, e tantos outros estádios em que jogamos. Agradeço o carinho diário em aeroportos, hotéis, estádios, nas poucas vezes que vou, por exemplo, a um shopping. Sempre há manifestações de carinho. Os torcedores que gritaram durante anos. Eu agradeço a Deus o que a vida me propiciou, ter vivido uma carreira tão longínqua, relativamente vencedora, e ter tido a oportunidade de jogar no São Paulo.
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