“A Operação Lava Jato é um patrimônio da sociedade brasileira, e não há força humana capaz de barra-la”.
A frase, do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Ayres Brito, descreve um sentimento comum para a maioria dos brasileiros que há mais de três anos acorda e dorme tendo pelo menos uma novidade do caso a cada dia.
Desde que começou, como uma simples operação para investigar lavagem de dinheiro, a operação cresceu e passou a envolver pesos pesados da política e da economia nacional. Além das três maiores empresas do país em faturamento, todos os cinco ex-presidentes da República, além do atual, Michel Temer, já foram citados ao menos uma vez em alguma delação. Nada menos do que três bilionários já foram parar atrás das grades, além de cinco outros citados, e o ex-homem mais rico do país, que cumpre prisão domiciliar. Nas nove maiores empreiteiras do país, não há uma sequer onde ao menos um executivo do alto escalão não tenha passado uma temporada em Curitiba.
Os números impressionam. São ao menos dezesseis empresas denunciadas até agora, um ex-presidente da Câmara dos Deputados preso, dois ex-presidentes de partido na cadeia, três candidatos da última eleição presidencial sob suspeita, treze senadores na mira da Justiça e um ex-presidente do Senado respondendo a nove inquéritos no STF. Nada menos do que seis tribunais em três estados e no Distrito Federal envolvidos, além de 239 acusados.
Nada disso, no entanto, torna a Operação Lava Jato imune a críticas. Para boa parte daqueles que torcem o nariz sempre que ouvem falar esse nome, o que merece destaque de verdade até aqui é o seu caráter supostamente partidário e um objetivo político-partidário de prender especificamente um dos personagens investigados no caso – o ex-presidente Lula, réu em cinco processos.
Boatos sobre Sergio Moro, sua esposa, pai ou qualquer outra figura que se relacione com o juiz já poluíram a internet e criaram, além de muita desinformação, uma sensação de que, de fato, Moro e Lula antagonizam os rumos da Lava Jato.
Só tem um problema. Nada disso se sustenta ao menor escrutínio dos fatos.
1. Há um confronto entre Moro e Lula.
Enumerar a quantidade de processos e pessoas envolvidas na realização da Lava Jato é uma tarefa quase impossível. São ao menos cinco tribunais em três estados e no Distrito Federal, além de incontáveis agentes da Polícia Federal, envolvidos nas quarenta fases da operação até aqui, além de dezenas de membros do Ministério Público integrando sua força-tarefa.
Para a mídia brasileira, no entanto, Sérgio Moro tornou-se praticamente um sinônimo de Operação Lava Jato.
O que poderia significar um apoio a alguém com tamanha responsabilidade, acabou tornando-se fonte de imensa confusão. Não é raro encontrar quem acredite que Moro é responsável por investigar Lula, ou ainda que seja responsável por acusá-lo de algum crime. Ledo engano. Apesar da insistência da imprensa brasileira, o papel do juiz, como deixa bem claro a Constituição Federal em seu artigo 109, é bem definido: aos juízes federais compete processar e julgar.
Não coube até aqui a Moro, portanto, investigar e acusar o ex-presidente nos cinco processos em que Lula acabou virando réu.
Tal confusão acabou alcançando seu ponto máximo nas últimas semanas, quando Lula e Moro estamparam juntos capas de algumas das revistas mais vendidas do país. O resultado: fomentar a noção de que o ex-presidente não enfrenta uma série de provas e acusações realizadas pelo Ministério Público, mas o próprio juiz, num embate pessoal.
Ao personificar a Justiça brasileira, o resultado é um cenário onde ambos – réu e juiz – acabam nas mesmas posições no processo. Apenas adversários.
Como membro do Judiciário, ainda que com destaque na Lava Jato, o juiz Sérgio Moro não tem condições de agir por razões pessoais. E isso acontece porque ele é um juiz de primeira instância. Todas as suas decisões são avaliadas por tribunais superiores. Afinal, se a questão envolvendo Lula e Moro é pessoal, por que até esse momento menos de 4% dos recursos contra decisões de Moro foram revisadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região e os superiores tribunais Federal e de Justiça?
2. Moro é filiado ao PSDB.
Desqualificar o juiz ou sua família como sendo partidários tem sido a estratégia mais comum dentre os boatos até aqui. Desde o início da operação, Moro até mesmo sua esposa ser acusada de ter relações com partidos de oposição ao então governo petista.
Em uma das tais denúncias, fotos de sua esposa, Rosângela Moro, com o vice-governador do Paraná Flávio Arns, comprovariam a ligação de Rosângela com o PSDB.
De fato, não há montagem nestas fotos. Rosângela e Flávio se conhecem há um bom tempo. Flávio, sobrinho de Zilda Arns, foi presidente das APAEs no Paraná, e Rosângela, advogada da instituição.
Na época em que ambos trabalharam juntos porém, Flávio não apenas não tinha qualquer atuação política, como ainda chegou a ser filiado ao PT, de onde saiu em 2009.
Acusações como estas também já atingiram o próprio Moro. Graças a uma pesquisa na lista de filiados do mesmo PSDB junto ao Tribunal Superior Eleitoral, começou a circular uma imagem de certo filiado, conhecido como Sérgio Roberto Moro. De fato, o filiado existe, e está registrado no partido. O erro? O juiz federal se chama Sérgio Fernando Moro.
3. A esposa de Moro é responsável por desviar R$ 450 milhões das APAEs no Paraná.
Moro, no entanto, está longe de ser o único envolvido em boatos. Mais recentemente, a bola da vez foi sua esposa, Rosângela, questionada por sua atuação junto à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais.
Unindo duas falas do blogueiro Luis Nassif, com base em uma reportagem de 2014, o nome de Rosângela foi imediatamente vinculado a um suposto escândalo nas APAEs do estado do Paraná, denunciado pelo jornalista.
Durante sua investigação, Nassif encontrou discrepâncias entre os repasses feitos pela Secretaria de Educação do Estado, comandada então por Flávio Arns, e gastos de inúmeras APAEs espalhadas pelo estado. Com base nestas discrepâncias, supos que o caso devesse ser alvo de investigação.
Até o momento, no entanto, não há qualquer investigação sobre as APAEs e nenhum inquérito que sequer cite Rosângela como tendo atuado em qualquer ato ilícito no período.
Após a notícia se espalhar, o mesmo blogueiro citado como fonte acabou vindo a público para negar que tenha acusado Rosângela de qualquer envolvimento, limitando-se a apontar que considera haver razões para investigar o caso.
4. Moro ganha R$ 77 mil por mês como juiz.
Na onda de igualar Moro aos réus no processo da Lava Jato, a mais bem sucedida ação até aqui foi justamente a de mostrá-lo como um dos beneficiários das já conhecidas exorbitâncias pagas aos juízes brasileiros.
Que nosso judiciário é caro e pouco eficiente, não é nenhuma novidade. Gastamos por aqui 1,5% do PIB para fazer justiça, contra 0,3% dos nossos vizinhos Chile e Argentina. O resultado é uma imagem cristalizada e, com boa dose de razão na mentalidade da população brasileira, de que nosso judiciário é repleto de funcionários remunerados em valores exorbitantes.
Todo salário dos nossos magistrados, porém, deveria em tese ter um limite: R$ 39,2 mil, ou o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Todo magistrado que descumprir este teto infringe a lei.
Com base nisso, o boato de que o juiz Sérgio Moro seria um destes fora da lei ganhou força nos últimos meses. Para fazer valê-lo, os responsáveis pelo boato pegaram um mês atípico – onde o salário real do juiz, R$ 28,947,55, segundo o site do TRF4 (o Tribunal Regional Federal da Quarta Região, onde ele trabalha) soma-se a verbas indenizatórias de R$ 5,176,63, que o juiz recebeu em função de ter pago do próprio bolso despesas do Judiciário, além de R$ 43,229,38, em função do adiantamento de férias e outros benefícios trabalhistas garantidos em lei.
5. Moro arquivou a corrupção no caso Banestado, um escândalo de R$ 520 bilhões.
Um dos mais emblemáticos casos de corrupção na história do país, o do Banestado, foi responsável por enviar ilegalmente US$ 24 bilhões para o exterior por meio do banco público paranaense. Do total, cerca de US$ 17 milhões foram recuperados. Um número 27 vezes menor do que o recuperado até aqui pela Lava Jato.
Um dos personagens envolvidos no caso, Alberto Yousseff, que você certamente já ouviu falar associado ao Petrolão, fechou um acordo de delação premiada com o Ministério Público estadual. Ao ver que o doleiro incorreu no mesmo crime novamente, Sergio Moro suspendeu o acordo e retomou o processo do Banestado contra Yousseff, condenando-o a 4 anos e 4 meses de prisão (Yousseff ainda não foi condenado na Lava Jato). Não é verdade, portanto, ao contrário do que dizem os boatos, que o doleiro tenha escapado por conta de Moro.
Cerca de 684 pessoas foram denunciadas pelo escândalo do Banestado – 97 foram condenadas até 2011. Da parte do juiz Sergio Moro, que na época possuía 31 anos,foram 25 condenações em apenas 12 meses. Seja por lentidão da Justiça em julgar nas instâncias superiores ou por manobras de seus advogados, muitas condenações caíram. Em 2013, o Superior Tribunal de Justiça extinguiu a pena de 7 condenados. Outras penas foram extintas ou casos arquivados em recursos no mesmo TRF4. O certo é que, de Moro, as condenações ocorreram. E foram rápidas.
Em outra operação, a Farol da Colina, Moro decretou de uma única vez a prisão de 123 pessoas, tirando de circulação 63 doleiros
6. Moro não julga C̶u̶n̶h̶a̶, Aécio, Temer e outros políticos.
Provavelmente o mais antigo dos boatos sobre a atuação do juiz, a acusação de que sua atuação seria seletiva por não julgar nomes como Aécio Neves, citado 5 vezes nas delações, é também a mais absurda delas.
De tão velha, o boato virou piada, tendo em vista que no argumento inicial questionava por que Eduardo Cunha – hoje condenado a 15 anos de prisão – não era investigado pela Lava Jato.
Na prática, a resposta continua sendo justamente a mesma: Moro não pode julgar aqueles que possuem foro privilegiado, pois é um juiz de primeira instância. Assim que Cunha teve seu mandato cassado, perdendo seu foro, o ex-presidente da Câmara dos Deputados não precisou de muito tempo para ir parar atrás das grades.
Presidentes, ministros, deputados, senadores e outras dezenas de milhares de pessoas no Brasil (38,381 mil segundo a última estimativa da Lava Jato), estão fora do alcance legal de Sergio Moro.
Isso explica também por que Moro não julga o caso de senadores como Gleisi Hoffmann ou Lindbergh Farias, ambos citados nas delações da empreiteira Camargo Corrêa, ou a deputada Maria do Rosário, citada pela Engevix. Em todos esses casos, o foro competente é o Supremo Tribunal Federal, se assim concordar o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot.
Janot, indicado por Dilma em 2013, é o responsável por denunciar ministros, senadores, deputados, ou mesmo a presidente da República, cabendo ao STF autorizar a abertura de inquérito. Ao fazê-lo, o caso segue para o ministro Edson Fachin, substituto de Teori Zavascki, ambos também indicados por Dilma para o STF. Fachin é o relator da Lava Jato na instância máxima da nossa Justiça. Cabe a ele, por exemplo, a responsabilidade sobre o não andamento dos nove casos que pesam sobre o senador Renan Calheiros ou contra o senador Fernando Collor.
Ao juiz Sergio Moro, cabe julgar aqueles que não possuem foro privilegiado, como donos de empreiteiras, ex-ministros, como Palocci e Mantega, ou mesmo, ex-presidentes, como Lula e Dilma.
É exatamente o que ele vem fazendo. Apesar dos boatos.
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