O que você faria com 3,9 bilhões de reais todos os anos? Na ponta do lápis, este é todo o valor que o Ministério da Saúde investiu em novos hospitais, ambulâncias e equipamentos para o SUS num intervalo de doze meses. É muita grana, não? 3,9 bilhões de reais é também o atual valor repassado anualmente aos 17 mil sindicatos brasileiros, por meio do imposto sindical obrigatório, extinto esta semana pelo Congresso com a reforma trabalhista.
As consequências são inevitáveis. Seriamente afetadas pela decisão, as principais centrais sindicais do país estão neste momento realizando uma greve geral – a primeira em mais de duas décadas.
Desde o impeachment, aliás, greve geral é uma expressão que voltou ao vocabulário político brasileiro. Neste período, apenas a Central Única dos Trabalhadores, que você repetidamente testemunhou em atos contrários à saída de Dilma do Planalto, publicou nada menos do que 33 pedidos de convocação de uma greve geral em seu site.
Mesmo centrais sindicais supostamente favoráveis ao atual governo encontram-se alinhadas à ideia de greve, como é o caso da Força Sindical. Seu presidente, Paulinho da Força, além de ex-integrante da tropa de choque de Eduardo Cunha, se notabilizou pela extensa campanha contrária ao fim do imposto sindical nas últimas semanas.
Lado a lado, centrais sindicais rivais encontraram no momento atual uma forma de pressionar o governo, cada qual a seu modo. Junto delas, sindicatos dos mais variados nichos de atuação – incluindo o de professores e boa parte dos que atendem o funcionalismo público, os mais afetados pelas mudanças nas regras da previdência.
O certo é que, independentemente de quantas pessoas ou categorias estejam nas ruas neste momento, não é de se espantar que cada um, à sua maneira, esteja lutando pelos seus interesses e privilégios. Mas esse é apenas um lado da história. Há algumas coisas que todos esses grupos acabaram esquecendo de contar para você na hora de tentar convencê-lo a partir para uma greve. E é exatamente esse papel que nós desempenharemos no decorrer deste texto.
1) Não, o seu salário não depende da boa vontade de um político.
Você alguma vez já se perguntou por que o governo não determina que o salário mínimo seja de R$ 3.200 por pessoa? É um bom salário, não? Com este valor, segundo o DIEESE, seria possível atender todos os pré-requisitos, estabelecidos pela constituição, a que um cidadão tem direito. Num país onde mais da metade da população ganha 1/3 desse valor, não é difícil imaginar que um aumento desses representaria um ganho significativo de qualidade de vida, não é mesmo?
Não exatamente.
A primeira coisa que você deve entender sobre essa história é que, independentemente de o governo criar um piso artificial numa única canetada, prometendo resolver a vida dos trabalhadores brasileiros, salários ainda dependem do que podemos fazer com eles.
Pense no que ocorreria, por exemplo, se todos passassem hoje a ganhar R$ 3.200 e a quantidade de bens e serviços produzidos no país continuasse a mesma – algo que não é possível alterar da noite para o dia. Não é muito difícil perceber que o preço dos bens e serviços subiria, para atender a demanda criada pelo aumento salarial artificial, corroendo nossa moeda até igualar o novo nível de dinheiro ao nível de bens e serviços – e quem tem mais tem de trinta anos sabe na pele o que estou falando: inflação. É dinheiro de mentirinha. Uma falsa sensação de que você está ganhando bem.
Isso ocorre porque, em última instância, o salário de um indivíduo está ligado à sua produtividade. Na sociedade, a capacidade de elevar os salários esbarra justamente em existir espaço para esta elevação. Em outras palavras: se a produtividade não crescer é impossível continuar elevando a renda.
O que determina essa tal produtividade? Fatores como educação e a quantidade de recursos investidos por pessoa são fundamentais para determinar o quanto cada indivíduo é capaz de produzir em riqueza. E este é um dos maiores problemas do Brasil.
Há quatro décadas, nossa produtividade está praticamente estagnada – ou seja, cresce nada ou muito perto disso. Na prática, um trabalhador brasileiro do século vinte e um permanece com o mesmo nível de produtividade de um trabalhador dos anos setenta.
O que isso tudo significa? Que a simples vontade política não é um fator determinante na elevação da renda de uma pessoa. Ou seja: por mais interessado que um político esteja em aumentar o seu salário, ele não pode fugir dessa realidade.
2) No Brasil, abrir um sindicato é um negócio (e dos mais lucrativos).
Todos os anos, faça chuva ou faça sol, surge no país um novo sindicato num intervalo de apenas dois dias. E entender por que isso acontece não é muito difícil.
Desde 1937, quando Getúlio Vargas publicou a constituição que respaldaria sua ditadura, uma contribuição sindical tornou-se obrigatória independentemente do fato de você estar filiado a um sindicato ou não. Desde então, cada cidadão é obrigado a contribuir com os sindicatos pelo valor de um dia do seu trabalho durante o ano.
Na soma, R$ 3,9 bilhões, como citado no início desse texto, que atendem desde a CUT e os sindicatos mais conhecidos – como o Sindicato dos Comerciários – aos mais surreais, como o Sindicato das Indústrias de Roupas para Homens e Camisas Brancas do Estado de São Paulo ou o Sindicato de Trabalhadores de Entidades Sindicais (vulgo sindicato dos que trabalham em sindicatos).
Segundo dados do Ministério do Trabalho, nada menos do que um em cada cinco sindicatos do Brasil nunca participaram de uma negociação coletiva. O que significa, em outras palavras, que nunca atuaram para representar aqueles que os financiam. Na prática, isso pouco importa. Continuam recebendo.
3) Mais direitos trabalhistas não é algo que necessariamente significa uma renda maior para os trabalhadores.
O que leva um mexicano a abandonar um país onde ser demitido é pode render uma indenização equivalente a 74 semanas de trabalho para um país onde sequer existe aviso prévio, férias ou qualquer destes benefícios trabalhistas comuns, como os Estados Unidos? Ou ainda: o que leva 4 milhões de indonésios, o país onde é mais difícil demitir uma pessoa em toda a Ásia, a viverem em outras países do continente, como em Cingapura, um país onde sequer existe lei de salário mínimo?
Por que um espanhol abriria mão de um país onde o salário mínimo chega a 825 euros por mês, para migrar para a Dinamarca ou Suíça, países onde salário mínimo não é previsto em lei?
Perguntas como essas soam complicadas a muitos trabalhistas, mas revelam algo bem sugestivo sobre a vida laboral: para a maior parte dos trabalhadores é mais importante ter condições de receber uma boa renda do que ter garantia em lei de continuar recebendo algo em um emprego estável – leis que muitas vezes garantem apenas subdesenvolvimento.
Mais importa conseguir ampliar sua renda em países como o Canadá, a Austrália, Cingapura ou os Estados Unidos, onde, segundo o Banco Mundial, é mais fácil demitir uma pessoa sem complicações, do que amarrar-se às legislações de países como França, Itália ou Brasil, os três onde mais se paga impostos sobre o trabalho no mundo.
Na prática, o que qualquer um que imigre em busca de trabalho percebe é que muito mais do que escrever palavras e direitos em um papel, é preciso criar oportunidades – sem isso, a palavra escrita em uma constituição, por mais bonita que seja, perde o valor.
4) Nenhum sindicato convocou greve geral quando o governo achou razoável aumentar sua dívida para repassar R$ 523 bilhões a grandes empresários.
Pode parecer estranho que o país tenha levado quase duas décadas para ver uma nova tentativa de se convocar uma greve geral – afinal, durante os primeiros cinco anos pós-ditadura, tivemos nada menos do que três greves bem sucedidas. Para quem acompanha de perto a política e a economia brasileiras, não é difícil citar momentos em que a situação tornou-se alarmante e mereceu atenção das centrais sindicais.
Em um dos momentos recentes de maior relevância, o governo decidiu colocar-se no centro da economia, tornando-se responsável por mais da metade do crédito no país. E fez isso de uma maneira muito simples: aumentando sua própria dívida.
Ao definir quem recebe tais empréstimos, de maneira subsidiada – ou seja, pagando juros menores do que a própria inflação – cerca de 70% dos beneficiários foram justamente as grandes empresas.
Em outras palavras: um grande esquema que endividava a população e transferia dinheiro às empresas mais ricas do país. E a pergunta que não quer calar agora é: onde estavam os grandes sindicatos nesse tempo todo?
O presidente da CUT, Vagner Freitas, estava no conselho do BNDES, o banco que aprovava cada uma destas ações.
Para isso, recebeu valores que podem chegar até R$ 23 mil mensais. Nada mal, hein?
5) O conflito entre Cidadão x Estado é tão ou mais importante que o embate entre empregado e empregador.
No papel, um sindicato existe para proteger os direitos dos trabalhadores. Na prática, o único conflito intermediado por parte dos sindicatos parece ser aquele que se origina junto aos empregadores. Conflitos eventuais entre os trabalhadores e o governo têm pouca ou nenhuma relevância.
Como mostrou uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, para boa parte da população que vive na periferia de São Paulo, o debate entre o cidadão e o Estado é bastante presente.
No país onde mais se paga imposto sobre o trabalho no mundo, exatos R$ 57,56 a cada R$ 100 em salários, não há em Brasília um único sindicato ocupado em tentar mudar esta realidade – deixando uma parte maior do seu salário no seu bolso e não nos cofres do governo. Não há também sindicatos preocupados em ampliar o retorno do seu FGTS, que entre 1999 e 2015 teve um prejuízo de R$ 229 bilhões acumulados.
Há cinco representantes de sindicatos no conselho do FGTS, recebendo remunerações que podem chegar a R$ 7 mil, para comparecimento a uma única reunião mensal.
Exemplos como este se espalham por toda a administração pública.
Ao contrário dos acertos entre Emílio Odebrecht e sindicalistas para impedir manifestações em suas obras, porém, nada disso é escondido ou tratado como indecoroso. Trata-se de sindicalistas cumprindo seu dever: ser rigoroso junto aos empregadores, e fingir que nada ocorre de errado na relação trabalhador-governo.
6) Nenhum deles apresentou alternativas à reforma da Previdência.
Reformar a Previdência não é exatamente uma ideia nova. Desde o governo Collor, todos os governantes buscaram mudar uma ou outra regra para reduzir o custo a ser pago pelo crescimento do gasto previdenciário no longo prazo. Mas foi a partir do governo FHC que as reformas se tornaram cada vez mais duras.
No governo Lula, pensões para filhas de militares tornaram-se coisa do passado. No governo Dilma, aposentadoria integral deixou de ser uma realidade para o funcionalismo público.
Em comum, mesmo nos governos com forte apoio por parte de centrais sindicais, há uma completa apatia junto ao debate. Em todos estes casos, sindicatos do funcionalismo público opuseram-se à mudança, tal qual fazem hoje, quando Temer propõe tornar o teto do serviço público igual ao teto do setor privado.
Não há até aqui, em mais de duas décadas, nenhuma reforma que tenha sido apoiada por parte de sindicatos, em especial pelos sindicatos do funcionalismo.
Ainda que em 2015, 1 milhão de funcionários públicos tenha tido um déficit igual ao de 28 milhões de membros do INSS, em nenhum momento, qualquer destes sindicatos apresentou uma solução para o problema.
Trata-se de um debate onde um lado propõe soluções – algumas longe de serem boas para a economia brasileira, é verdade – enquanto o outro age sempre fazendo campanha contra, independentemente da pauta.
No fim, perdem todos que ainda acreditam que é possível encontrar soluções por meio do debate.
7) Para os sindicatos, a solução dos seus problemas pode ser Renan Calheiros.
A aprovação da reforma na Câmara dos Deputados parece ter mostrado a fraqueza dos sindicatos em articular apoio junto aos congressistas. Uma derrota histórica, no entanto, que põe fim a um imposto de oito décadas que mantém irrigado todo o sistema de sindicatos do país, não é algo que ocorreria sem contestação de alguns políticos.
Pensando nisso, CUT, GGT, Força Sindical e outras representantes sindicais foram ao Senado Federal em busca de apoio. Por lá, encontraram Renan Calheiros, agora oficialmente de oposição ao governo federal, ainda que do mesmo partido.
Tal qual Cunha, para estas centrais, o apoio de alguém com poder e influência, que rejeita o próprio partido e lança-se na oposição, parece uma centelha de esperança.
Para ter certeza de que Renan poderá de fato mudar algo a essa altura do campeonato, no entanto, é necessário que as centrais sindicais cumpram sua parte e demonstrem força na realização da greve.
Para os sindicalistas presentes, Renan continua sendo o “líder de todos nós”, independentemente de seus nove processos em tramitação no STF.
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