Estamos em obra.
Para qualquer um que se aventure a entender o Brasil das últimas décadas, é provável que esta seja a definição mais próxima que você irá encontrar para descrever nosso dia a dia, seja na Previdência, no Código Civil, na parte tributária, política, trabalhista, etc. Quando se fala em senso comum, não há problema no Brasil que não possa ser solucionado por uma simples reforma. E, no que depender dos políticos brasileiros, desta vez a política será modificada pra valer.
Com a necessidade de votar projetos e propostas de emendas constitucionais até a próxima quarta-feira, 20 de setembro, para garantir que passem a valer já em 2018, o Congresso corre contra o tempo. Nesta tentativa de acerto, não se espante se as maiores bizarrices ganharem pouco destaque ou discussão e forem simplesmente aprovadas.
No paradoxo da política brasileira, toda véspera de eleição é igual: políticos definem como será a regra do jogo que disputarão no ano seguinte em busca da reeleição. De novidade, é provável que você já tenha sacado que, rondando ali na esquina, encontra-se um processo de renovação poucas vezes vistos, exatamente como ocorreu em 2016.
Com uma renovação de 43,7% em 2014, o Congresso hoje encontra na Lava Jato um elemento novo, cuja força é capaz de mudar radicalmente a composição da casa.
Evitar isso tem sido o principal objetivo de boa parte dos partidos que se propõem a votar a tal reforma. Nesta corrida, você verá as propostas mais surreais possíveis, seja para garantir uma boa verba de campanha com o fundo eleitoral de R$ 3,6 bilhões, que ainda resiste, como para conseguir votações em lista fechada ou uma mudança radical na maneira como seus votos são computados para eleger alguém. Além destas, outras mudanças, que permitirão aos deputados mais votados se elegerem, acabando com o famoso candidato puxador de voto, também integram a lista.
Se você está meio perdido nisso tudo, preparamos um guia abaixo com os pontos que serão votados e com aquilo que pode ou não ser válido já para 2018:
1. O distritão e o distritão misto
Pode parecer lógico que quando falamos em eleger alguém, aqueles mais votados necessariamente sejam eleitos, a exemplo de como são feitas as eleições para o Executivo. Quando se trata do Legislativo brasileiro, porém, a história não é bem assim, e é justamente isso que pode mudar.
Para eleger um deputado estadual, federal ou vereador, os partidos brasileiros precisam hoje cumprir o chamado quociente eleitoral. Em outras palavras: o partido precisa cumprir um número mínimo de votos para eleger alguém e pode cumprir este número mínimo com um ou cem candidatos, pouco importa.
Na prática, significa dizer que, se um candidato apenas tiver oito vezes mais do que o mínimo de votos, ele elegerá além de si mesmo outros sete políticos, independentemente de quantos votos eles tenham conseguido. De Enéas a Tiririca, casos de políticos brasileiros puxadores de votos são bastante comuns e um dos motivos pelos quais, na prática, apenas 35 dos 513 deputados federais receberam votos suficientes para se elegerem sozinhos.
Na nova proposta a ser votada, entraria em vigor o distritão, já em 2018, onde os candidatos eleitos seriam aqueles mais votados, até o limite de preenchimento das vagas.
Por mais lógico que possa parecer este modelo, existem críticas a serem feitas. Imagine, por exemplo, que neste sistema, candidatos de um mesmo partido tornar-se-iam rivais, disputando o mesmo espaço. Além do personalismo evidente que roubaria a cena dos partidos, ganharia espaço também o poder financeiro de um candidato, por razões óbvias: por aqui, boa parte da população escolhe seu candidato na reta final. Logo, aquele que tiver mais condições de se expor positivamente amplia suas chances de ser eleito.
Com o modelo do distritão em vigor, a renovação do Congresso torna-se mais difícil, favorecendo os mesmos deputados que já estão aí.
Se você acha isso um problema, lembre-se que este é, em tese, o primeiro passo proposto pela PEC 77/2003. Em um segundo momento – ou seja, nas eleições de 2022 -, o modelo mudaria novamente, para o chamado distritão misto. Neste sistema, o eleitor vota duas vezes: uma para eleger seu deputado e outra no partido. No primeiro voto, são eleitos metade dos candidatos, por ordem de mais votado, e no segundo, os partidos determinam por meio de uma lista fechada e pré-determinada quem serão os eleitos.
Eleger um candidato desconhecido poderia ser a parte mais esdrúxula das propostas em votação – em especial para um país ainda acostumado a lidar com coronéis e dinastias políticas que parecem intermináveis -, mas quando se trata do Congresso brasileiro, não é difícil ver que tudo pode sempre ficar ainda mais complicado.
Seguido de um modelo que encarece ainda mais as campanhas, os deputados debatem ainda uma solução prática para os tempos de crise, em que bilionários doadores costumazes de campanha encontram-se presos: ampliar o uso de verba pública.
2. O fundão: R$ 3,2 bilhões em dinheiro público pra bancar campanha
Uma verba maior que todo o orçamento de investimentos em equipamentos e novas unidades de saúde feitos pelo governo federal, ou ainda, mais do que um estado de 8 milhões de habitantes como Santa Catarina investe em segurança ao longo de um ano. Eis o resumo de quanto os congressistas brasileiros esperam gastar do seu dinheiro para fazer campanha.
Com o financiamento empresarial vetado na última reforma, e o caixa 2 ameaçado com a prisão de nomes como Marcelo Odebrecht e os irmãos Batista, fazer uma eleição no Brasil tornou-se um problema para os políticos.
Com o nome pomposo de Fundo Especial de Financiamento da Democracia, os parlamentares esperam destinar uma verba extra de 0,5% da receita corrente líquida dos últimos 12 meses para suas campanhas eleitorais. Na ponta do lápis, a medida pode render hoje R$ 3,2 bilhões, mas seu efeito é ainda mais perverso no longo prazo, pois atrelaria o custo com as eleições ao crescimento da receita, permitindo que, numa eleição dentro de oito anos, por exemplo, chegue a custar R$ 6 bilhões, e assim por diante.
Nada disso porém altera o já existente Fundo Partidário, que seria mantido com o objetivo de financiar o cotidiano dos partidos, enquanto o novo fundo financiaria apenas as eleições a cada quatro anos.
Para ter acesso à prestação de contas de um único partido hoje, você precisa pacientemente se aventurar entre literalmente milhares de documentos escaneados e ordenados cada um à sua maneira. Isto, é claro, quando de fato há prestação de contas dos recursos do Fundo Partidário. Partidos que lideram o recebimento da verba por exemplo, consideram hoje que sua obrigação com a prestação de contas se extingue quando destinam 20% dos recursos para a fundação do partido, de modo que não precisam prestar contas de como a fundação faz uso destes valores.
Multiplique tudo por uma escala ainda mais confusa – e não se esqueça que o processo de avaliação das contas da campanha de 2014 levou pouco mais de dois anos para ser julgado – e você terá uma dimensão do problema: seu dinheiro, com pouca ou nenhuma fiscalização, sendo utilizado para bancar os mesmos políticos de sempre.
Pela proposta, metade de dos recursos seriam divididos igualmente, e o restante proporcionalmente ao tamanho da bancada no Congresso. Ainda assim, teríamos casos como o PCO, de Rui Costa Pimenta, com menos de 4 mil filiados e que passaria a receber R$ 50 milhões. Casos idênticos ocorreriam com o PRTB de Levy Fidélix, o PSTU e inúmeros outros partidos sem grande representatividade de filiados, que estariam livres e desimpedidos de colocar a mão no seu bolso.
3. Mandatos de dez anos para membros de tribunais superiores
Indicados pelo Presidente da República, ministros de tribunais como o Supremo Tribunal Federal cumprem hoje o chamado mandato vitalício. Na prática, apenas um impeachment pode tirá-los do cargo, feito que até hoje nunca ocorreu na história do país.
Na prática, um juiz pode ser apontado para o cargo ainda novo, como o ministro Alexandre de Moraes, e por lá permanecer por literalmente décadas. No caso do ministro Moraes, hoje com 48 anos, é possível que ele permaneça no cargo por exatos 27 anos, até que a lei o obrigue a se aposentar.
Mandatos vitalícios em cortes superiores não são uma excentricidade brasileira, sendo a regra em inúmeros países, como os Estados Unidos.
Se aprovada, a regra valeria apenas para os novos ministros, sendo os atuais mantidos no cargo por tempo vitalício.
Dentre os receios de medidas como esta, o óbvio trampolim político que um cargo deste representa ainda pesa, mas torna-se possível evitar, por exemplo, que um mesmo presidente passe décadas interferindo na vida pública do país por meio de seus indicados. A chance de aprovação da medida é relativamente alta, apesar de poder ser considerada inconstitucional.
4. O fim dos partidos nanicos
Legendas de aluguel que representam praticamente ninguém exceto seus próprios membros, os chamados partidos nanicos não raro encontram-se no centro de boa parte das propostas de reforma política.
Seja para ceder tempo de televisão ou espaço para campanha, os nanicos representam hoje a maior parte dos mais de 30 partidos do país, a despeito de sua bancada diminuta. Em um modelo onde ao menos metade do fundo partidário é dividido igualmente, acabam se beneficiando do excedente de verbas para a política nacional e, com isso, tornando-se muitas vezes bastante lucrativos, mesmo que de forma completamente lícita.
No relatório apresentado no Senado, a reforma prevê que, para 2030, um partido deva ter eleito no mínimo 18 deputados em ao menos 1/3 das unidades da federação, além de ter feito no mínimo 3% dos votos válidos nestas mesmas unidades.
Com as medidas mais rígidas, o Fundo Partidário acaba tornando-se um bolo a ser dividido quase que na totalidade por um número cada vez mais diminuto de partidos, colaborando para a manutenção dos mesmos.
Outras propostas, como uma cláusula de barreira que exigiria ao menos 1,5% dos votos em 14 unidades da federação, também estão na lista para serem votadas e, neste caso, passaria a valer já para as eleições de 2018.
Aprovada em 2006 e posteriormente declarada inconstitucional, a cláusula de barreira não é novidade, mas no modelo proposto atualmente, torna-se mais branda. No caso de 2006, por exemplo, um partido que não atingisse 5% dos votos válidos, sendo ao menos 2% em nove estados, ficaria impossibilidade de assumir qualquer cadeira no Congresso. No modelo atual, o partido que não cumprir a cláusula pode assumir uma vaga, caso eleja alguém, mas fica impossibilitado de recorrer ao fundo partidário ou ao horário de TV destinado aos partidos.
5. O Fim das coligações e as Federações de Partidos.
Na completa desordem política que parece reinar no país, não deveria ser surpresa que algo de fato complicado, como o quociente eleitoral, torne-se ainda mais confuso quando analisado de perto. No caso do sistema de coligações, é exatamente isso que ocorre. Por meio destas coligações, é possível que seu voto seja utilizado para eleger um candidato não apenas diametralmente oposto àquele em quem você votou, mas também de um partido completamente diferente.
As vantagens para os partidos são simples de entender. Um partido menor se alia a outro maior para garantir a este seu tempo de TV, que, por menor que seja, acaba gerando uma vantagem na soma de inúmeros partidos, e, em troca, recebe deste partido maior não apenas cargos e benesses caso o candidato seja eleito, mas também votos.
Desta forma, é possível que um partido menor consiga emplacar um candidato mesmo que tenha apenas um nome conhecido, e não diversos candidatos, como seria caso ele tivesse de concorrer sozinho.
Em um exercício para entender o efeito prático das novas medidas, imagine que, com o fim das coligações e a vigência de cláusulas de desempenho ainda em 2014, apenas 11 partidos sobreviveriam ao corte, deixando 2/3 dos atuais partidos sem acesso ao financiamento público. Do ponto de vista da representatividade entre os partidos médios, o impacto seria muito menor, a despeito de os três maiores partidos (PT, PMDB e PSDB) terem ainda mais deputados que hoje.
Para burlar o fim das coligações, os parlamentares esperam poder aprovar as chamadas Federações de partidos, o que na prática significa que partidos menores poderão se unir a outros maiores, com afinidade ideológica, e coexistirem de maneira independente, recebendo verba pública, mesmo que individualmente não consigam atingir os tais votos necessários para sobreviver à cláusula de barreira.
Felippe Hermes
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