Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou um
projeto de lei que muda as regras do Carf (Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais), última instância de julgamento de questões tributárias na
administração federal.
O resultado representou uma vitória parcial para o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foi preciso chegar a um meio-termo com os
deputados para fazer a proposta avançar e ela ainda passará pelo Senado.
Veja, a seguir, algumas das principais mudanças:
O QUE É O CARF?
O Carf funciona como um tribunal da Receita, que julga
causas tributárias na esfera administrativa (sem envolver o Judiciário) —a
União e as empresas têm disputas bilionárias em torno do pagamento de tributos.
Ele reúne representantes da Fazenda e dos contribuintes e as empresas têm
indicados por entidades patronais.
O Carf surgiu em 2009, da junção de três conselhos. Para
se ter uma dimensão, de janeiro a abril, foram concluídos 5.000 processos pelo
conselho, envolvendo R$ 139 bilhões.
QUEM PARTICIPOU DA NEGOCIAÇÃO?
Esse era um dos principais pontos do pacote de ajuste
fiscal da equipe econômica, e a negociação contou com o ministro Fernando
Haddad, que conversou com representantes do setor privado, congressistas, o
relator da proposta, Beto Pereira (PSDB-MS) e o presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL).
O andamento da proposta também era importante para
"destravar" a pauta econômica na Câmara, que inclui questões
consideradas fundamentais pelo governo, como o novo arcabouço fiscal e a
Reforma Tributária.
O QUE ESTAVA EM JOGO?
O governo queria voltar a ter o chamado voto de qualidade,
em que poderia definir o resultado de uma disputa em caso de empate, mas que
foi extinto pelo Congresso em 2020. As empresas reclamavam que essa ferramenta
fazia com que o governo ganhasse sempre.
A União, por sua vez, argumentava que o fim do voto de
qualidade gerou uma perda de arrecadação de R$ 59 bilhões, e o retorno dele era
importante para ajudar no resultado primário (esse é o saldo entre despesas e
arrecadação do governo, sem contar os juros da dívida pública).
O voto de qualidade chegou a ser recriado via MP (medida
provisória) enviada ao Congresso em janeiro, logo no início do governo do
presidente Lula (PT), com efeito imediato, mas que perdeu validade.
O governo também defendia que, caso o contribuinte
perdesse a disputa no desempate, poderia recorrer à Justiça, mas se o desempate
fosse a favor do contribuinte, o crédito tributário se extinguiria
definitivamente e a Receita não poderia brigar na Justiça.
E QUEM PODE ACIONAR O CARF?
O valor mínimo em disputa para recorrer ao Carf é de 60
salários mínimos (R$ 79,2 mil). Haddad também tentava elevar esse valor para
mil salários mínimos (R$ 1,32 milhão), para reduzir o número de processos. A MP
do governo, antes de perder a validade, já fazia isso, mas o relator manteve a
regra atual, de 60 salários.
"Houve um apelo do setor produtivo, frentes
parlamentares e diversas confederações, um questionamento muito grande sobre
cercear o direito do contribuinte", justificou o relator.
O GOVERNO GANHOU OU PERDEU?
A aprovação é considerada uma vitória para o governo,
sobretudo para o ministro da Fazenda, mas o texto que passou na Câmara na
semana passada colocou condições para a volta do voto de qualidade.
Em caso de empate, a cobrança do valor principal do débito
continua valendo, mas são perdoados juros e multas, caso a dívida seja quitada
na esfera administrativa. O Fisco também não pode representar o contribuinte ao
Ministério Público por crime tributário.
Também ficou definido que, em até 90 dias do julgamento
definitivo a favor da Fazenda, o contribuinte poderá pagar o débito sem juros
de mora (por atraso) acumulados. Esses juros são calculados pela taxa Selic (os
juros básicos, hoje em 13,75% ao ano), desde o momento de lançamento do crédito
devido. É como colocar um prêmio para que ele pague sem precisar levar o
processo ao Judiciário.
A MUDANÇA É BOA OU RUIM?
Os analistas têm divergido sobre as mudanças no Carf.
Para Lívio Ribeiro, sócio da consultoria econômica BRCG e
pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação
Getúlio Vargas), trata-se de um ganho para o governo —ainda que não seja uma
vitória completa.
"Era uma estratégia de receita de curto prazo. Se por
um lado, essa estratégia deu certo, diversos atenuantes foram colocados pelo
relator. Não vejo como positivo ou negativo, mas essas mudanças podem nos levar
a uma instabilidade de regras, o que é algo muito nocivo", diz.
"Se a solução seguir como foi aprovada pela Câmara, é
um meio-termo, em que governo e contribuintes ganham e perdem. Os contribuintes
perdem a possibilidade anterior, de desempate favorável a eles. Por outro lado,
ganham pelo voto de qualidade derrubar todas as multas e a representação fiscal
para fins penais", afirma o tributarista Breno Vasconcelos, também da FGV
e ex-conselheiro do Carf.
"Já a União ganhou em dois pontos: volta a ter o voto
de qualidade e aumentam as chances de recuperar valores devidos —hoje, a
recuperabilidade dos processos que se encerram no Carf e são levados ao
Judiciário é menor que 5%."
Já o consultor econômico e especialista em contas públicas
Raul Velloso não é favorável a passos como esse, que em sua visão procuram
meios de resolver a questão fiscal arrecadando mais, especialmente quando se
trata de disputas na órbita tributária.
"Tenho dito e repetido que a questão é atacar o
crescimento excessivo do gasto previdenciário, algo que a própria Constituição
hoje comanda. E temos um caminho bem conhecido para fazer isso sem atingir
indevidamente ninguém. Por que não seguir por essa rota?"
Em coluna publicada na Folha de S.Paulo no início de
junho, o economista Samuel Pessoa avaliou que o retorno à situação que vigorava
antes da lei que acabou com o voto de qualidade tornava os incentivos
desequilibrados.
"A solução estrutural do problema envolve dois
passos. Primeiro, é necessário que avancemos muito na agenda de simplificação
para que nos tornemos um país um pouco mais normal em matéria tributária (...)
e segundo, que o Carf tenha independência da Receita."
BAHIA NOTÍCIAS / Douglas Gavras | Folhapress
Foto: Agência Senado
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