Faz tempo que mantenho comigo essa crônica acerca de uma verdadeira aventura carioca em solo baiano, e logo quando, no momento em que inicia na Boa Terra o ciclo anual de festas. Carlos Eduardo Novaes, advogado, cronista, romancista, contista e dramaturgo, desembarca na Cidade do Salvador com o intuito de se afastar das atribulações e ritmo do cotidiano carioca. Pecou o ilustre jornalista, por desconhecer o ritmo do cotidiano baiano, justamente nessa época do ano, e por estar totalmente despreparado para enfrentá-lo. Resultou isso em uma crônica divertida, mas porque não dizer, num retrato catastrófico causado pela surpresa de ter que enfrentar a energia típica de um povo que antes de mais nada ama estar alegre e descompromissado com qualquer que seja o compromisso, mas antes de mais nada de forma responsável, embora não aparentando.
O contraste colorido dos morros que circundam a cidade do Rio de Janeiro...
...com as luzes do entardecer cansado do coração empresarial e financeiro...
...quase nada têm a ver com a maravilhosa dádiva da natureza,
em uma das mais belas capitais do planeta.
“A REVOLUÇÃO BAIANA”
Jornal da Bahia – janeiro de 1981.
Carlos Eduardo Novaes.
“SALVADOR
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Sempre se disse que o baiano faz as coisas sem pressa, descansado, movendo-se em “slow-motion”. Há exemplos que confirmam tal característica: ano passado fui mandar fazer duas cópias de chave e o chaveiro, para minha surpresa, disse-me que ficariam prontas no dia seguinte. Meia-sola, que no Rio coloca-se em cinco minutos, em Salvador demora cerca de quatro horas – cada pé. A cidade tem um ritmo muito próprio, indolente, que favorece a preguiça e o descanso. Daí, tendo chegado ao fim do ano à beira do stress(no Rio de Janeiro), achei que Salvador era o local ideal para retemperar as forças e descansar o corpo.
A cidade abraçada pelo mar é um convite à contemplação e descanso.
O calor ameno de um verão permanente e suas praias de águas mornas,
fazem da Capital da Bahia um destino inigualável.
Em qualquer ponto da cidade as ondas acariciam seus habitantes
e visitantes, convidando-os a viver em seu ritmo malemolente.
Dia 30 de dezembro desembarquei em Salvador disposto a ficar recolhido em uma casinha na Pituba. O único esforço a que me permitiria seria o de segurar o coco para beber a água.
- Vim a Salvador para descansar, apenas descansar – adverti meus amigos no aeroporto.
- Tudo bem – disse um deles – mas só depois do Ano Novo, porque preparamos um réveillon para você.
Já estava tudo organizado. Seria um réveillon com poucas pessoas, na casa do meu amigo Agnaldo Calça Curta. Não me senti à vontade para tirar o corpo fora. De qualquer maneira, pensei, um réveillon com poucas pessoas, numa casa, não deve passar da manhã... Às cinco da matina ainda não tinha conseguido sair.
- Agora vocês vão me dar licença – disse com energia – mas vim a Salvador para descansar.
- Peraí rapá! Logo agora que o sol vai nascer. Você já viu o sol nascendo aqui em Salvador?
- Já vi – respondi meio cheio – já vi sim.
- Mas não desse ângulo. Veja. Olha ali... já está clareando.
- É uma pena que não possa parar o quadro como se faz no cinema e na televisão para apreciar melhor o nascer do sol, tenho certeza – continuou meu amigo - que a expressão “dar a luz” surgiu com o sol nascendo em Salvador.
Assim é a visão dos sonhos do visitante que almeja uns dias descompromissados
nas cálidas praias da Bahia.
No desembarque, logo na saída do Aeroporto "2 de Julho" a surpresa da
um tunel de bambus passa a sensação de se estar entrando em outro mundo...
e não está tão longe assim de ser verdade.
A alvorada baiana com o sol surgindo no horizonte sobre o mar
é de arrepiar... é algo que nunca mais se esquece...
...e se estiver surgindo estre os coqueiros de itapuã então...
- Maravilhoso! – exclamei o primeiro adjetivo que me veio à cabeça – mas agora eu vou me retirar porque preciso descansar.
- E você não vai acompanhar a procissão de Nosso Senhor dos Navegantes? Você não pode fazer isso! Não há nada mais bonito! Eu fico todo arrepiado só de falar.
- Quando é?
- É agora. Vamos sair todos daqui e pagar a escuna do Cobas no Iate...
- Eu vim a Salvador para descansar.
- Vai ter muito tempo para você descansar depois da procissão.
Não adianta tentar descrever a procissão marítima. É preciso participar. São centenas de barcos, escunas, saveiros, botes, acompanhando a galeota que conduz a imagem do Senhor dos Navegantes até a praia da Boa Viagem. Em todas as embarcações, uma batucada. Quando a procissão passa pelo porto há uma queima de fogos e todos os barcos apitam ao mesmo tempo. Realmente é de arrepiar.
A saída da procissão marítima tem lugar bem ao lado do Forte de São Marcelo.
A cidade dependurada no alto da encosta da Montanha de longe acompanha
sua primeira manifestação festiva de cada ano.
A galeota centenária carrega uma das mais belas imagens do
Senhor dos Navegantes da Bahia.
Centenas de embarcações de todo tipo cercam com fé e alegria
a pequena galeota que desaparece em meio a elas.
Novamente a bela embarcação se destaca quando chega em seu destino.
A praia da Boa Viagem, onde uma multidão ruidosa aguarda na frente da Igreja
o desembarque da bela imagem.
Espetáculo da fé e crenças de um povo simples e alegre.
Voltamos às 5 horas da tarde. Eu já me arrastava pelo convés da escuna “Bom Tempo”.
No cais me despedi dos amigos.
- Vou ver se durmo um pouquinho agora. Amanhã a geste se vê...
-Amanhã? Você ficou maluco? Vai perder a festa da Boa Viagem? Nós vamos para lá hoje à noite. É dessas festas de largo que você não encontra mais no Rio... muita birita, muitas barraquinhas...
Nem é preciso descrever a animação do lado profano dessas
festas de largo que ainda perduram na Bahia.
De um dia para o outro esse é o quadro dessa festa que mistura
fé com alegria de viver.
Era 3 horas da manhã quando estava entrando em casa. Despedi-me dos amigos que foram me levar de carro.
- Vou começar meu descanso a partir de agora. Daqui uns três dias a gente se vê...
- Gostou da festa da Boa Viagem? – perguntou Roberto Koch.
- Muito! – respondi no meio de um bocejo.
- Então nós viremos buscar você amanhã para ir à festa da Lapinha. É muito melhor que a da Boa Viagem!
- Eu vim para descansar – respondi desanimado.
- Tudo bem, mas você não pode perder a festa da Lapinha. É uma das mais importantes da Bahia... é a festa dos Reis Magos... é um tríduo que se estende até a madrugada do dia seis.
A festa de Reis é uma das poucas oriundas do folclore português. Além das barraquinhas há desfile de ternos e ranchos lembrando os antigos reisados.
O tranquilo e bucólico bairro da Lapinha se transforma numa réplica
portuguêsa em dias de ranchos e reisados.
O lado religioso e folclórico festeja a chegada dos Reis Magos.
Para logo depois dar novamente lugar ao festejo popular entre barracas,
samba de roda e outras manifestações da arte musical baiana.
Vim carregado da Lapinha. Por mim ficaria lá descansando num canto da calçada, mas os amigos acharam que eu devia ir em casa mudar de roupa e tomar um banho para melhorar o aspecto geral.
- Mas para que tomar banho e mudar de roupa? – perguntei me arrastando com os braços sobre os ombros dos amigos.
- Porque nós temos que ir pra festa do Bonfim que começa amanhã.
- Eu vim a Salvador para descansar – comentei abraçando uma pilastra – Eu vim aqui para descansar... Depois da festa do Bonfim, acaba?
- Depois da festa do Bonfim é que vai começar! Tem a festa da Ribeira e depois a festa do Rio Vermelho e a procissão marítima de Iemanjá e a festa da Pituba e a festa de Itapuã e a festa...
Concentradas na frente da Igreja de N. Sa. da Conceição da Praia,
as baianas com suas oferendas e uma grande multidão se preparam para
a marcha de seis quilômetros até a Colina Sagrada do Bonfim.
A participação do Afoxé dos Filhos de Gande da a nota
do sincretismo religioso do povo dessa terra.
Enquanto a marcha avamça, na escadaria da Igreja do Bonfim
em suas imaculadas vestes brancas as velhas baianas aguardam o momento
de entrar em ação com suas jarras de "água de cheiro".
Finalmente o momento esperado, a chegada da multidão que primeiramente
irá reverenciar o Santo maior da Terra da Bahia,
para em seguida se manifestar com a alegria que lhes é tão peculiar.
- CHEGA! CHEGA! – interrompi – me levem para o aeroporto, por favor... eu prefiro descansar trabalhando no Rio.
Entendi então porque o baiano faz suas coisas sem pressa, descansado, trabalhando em “slow-motion”: é durante o trabalho que ele descansa das festas da cidade. Salvador, não tenho dúvidas, é a cidade mais festeira do mundo. É um crime fazer o baiano trabalhar. A Bahia deveria ser, dentro do Brasil, uma grande reserva de festas e alegrias. Aliás, está caminhando para isso, tenho certeza: na véspera de meu retorno o Governador assinou o decreto 27.811 aumentando para cinco dias o Carnaval de Salvador.
Ps.: Diante da impossibilidade de responder pessoalmente a amigos e leitores que me enviaram cartões e telegramas de Boas Festas, quero aproveitar agora para pedir a todos que em 1981 não coloquem suas alegrias na poupança”.
E o que Carlos Novaes diz é verdade, verdadeira;
a chave da Cidade do Salvador é entregue para o Rei Momo na quinta-feira
e somente é devolvida na tarde da quarta-feira de cinzas.
Ao invés de cinco, são seis os alegres dias de folia.
Deixar para trás essa terra em dias de alegria é no mínimo...
...deixar de descansar das festas poulares, no Jardim de Aláh...
...ou de passar uma tarde boiando nas águas calmas do Porto da Barra.
Ou ficar sem fazer nada nas sombras dos "coqueiros de Itapuã" de Caymmi.
Também deixará de se sentar na grama dos fundos do Farol da Barra...
...e mesmo que tenha visto o nascer do sol da Bahia, não poderá
descrever como é seu pôr-do-sol, descansando de mais um dia de festa.
A Cidade do Salvador da Bahia de todos os Santos, é um dos únicos lugares
do mundo que tem o privilégio de ver o sol nascer no mar e se pôr sobre ele,
lá atrás da Ilha de Itaparica.
E para concluir, acrescento:
Mesmo não vivendo em um lugar que tenha o clima maravilhoso da Capital baiana, em todos os aspectos, façam como eles, como os baianos; soltem suas amarras e curtam um pouco mais a vida, mesmo que para isso tenham que trabalhar durante uma boa parte do tempo, ou do ano.