por RANGEL ALVES DA COSTA, poeta e cronista
Por Deus do céu, e Nossa Senhora das Virgens não há de me deixar mentir, como não suporto mais ouvir Roberto Carlos cantando que esse cara sou eu. Esse cara sou eu, esse cara sou, esse cara sou eu... Se piso numa loja, e lá está a música; se entro num elevador, e a dita bem em cima de minha cabeça; e se abro a porta dos fundos logo ouço a vizinha cantarolando que esse cara é ela.
Juro que não suporto mais, principalmente quando sei que a canção soaria mais verdadeira, mais profunda e convincente, se falasse sobre a realidade, a lide cotidiana, a labuta de sol a sol, e não apenas tecendo considerações sobre um romantismo adocicado para dizer que faz tudo pela mulher amada. Noutras palavras, que é apaixonado pela dita.
Quem está apaixonado, arriado dos quatro pneus como dizem no meu sertão, faz mesmo o que a música diz, é verdade. Deixa a princesa na cama, leva flores à rainha, dá mingauzinho na boca, joga água de lavanda, faz cafuné e ninar. Contudo, não acho a melhor ideia o homem se submeter a isso tudo e depois ainda cantar que esse cara é ele.
Não tenho nada a ver com o sucesso da música, com os méritos do rei e muito menos com quem suporta ouvi-la o dia inteiro. Que faça bom proveito de sua paixonite aguda. Mas, com toda sinceridade de minha alma sertaneja, de minha raiz nordestina, vingada de semente dura e na terra seca, preciso urgentemente dizer como um homem deve fazer pra depois ter orgulho de dizer: esse cabra sou eu...
Sim, esse cabra. E cabra no meu sertão não significa apenas animal mamífero ruminante da família dos bovídeos, mas também, e reconhecidamente, o sujeito matuto, o indivíduo do sol, aquele que se diferencia dos outros pelo seu destemor, pela valentia sertaneja e pelo encorajamento perante o seu mundo de brabezas.
Daí o cabra da peste, o cabra na tocaia, o cabra de sangue no olho. Daí esse cabra que sou...
Quem levanta antes de o galo cantar, acende o fogão de chão, rala a espiga de milho e bota o café torrado no bule, e depois cata os restos inexistentes, a perna de preá do outro dia, qualquer pedaço de toucinho, e tudo numa pressa danada para enganar o bucho e alimentar a família, é um cabra sertanejo que não desespera no sofrimento e ainda agradece às alturas pelo pouco que tem E esse cabra sou eu...
Quem olha pra mulher cansada mesmo depois de dormida, avista os filhinhos no sono solto, e de coração apertado promete a si mesmo que tudo fará para presenteá-los com uma vida melhor, mais digna e feliz, não é qualquer um não, mas só um cabra valente que não se deixa dobrar pelos desatinos. E esse cabra sou...
Quem ao abrir a porta da frente logo cedinho já recebe o bafo quente no rosto, o calorão entrando no corpo, e ao olhar ao redor os olhos cansados pouco enxergam além da paisagem nua e acinzentada, e coloca a mão na cabeça sem saber o que fazer diante da situação, não será outro senão aquele acostumado com a desvalia e a ressurreição. E esse cabra sou eu...
Quem sai pra feira com saco nas costas e pouco tostão no bolso, e no comércio matuto se encanta com tudo que encontra, e por isso mesmo se desespera porque não pode levar um pano de chita pra companheira, um sapatinho pro menino, uma bonequinha pra mais nova, absolutamente nada, mas faz do marejar dos olhos a certeza que um dia conseguirá muito mais, não é qualquer um não. Somente um cabra consciente. E esse cabra sou eu...
Quem, no modo de amar sertanejo, ama mais sua outra metade do que esse cabra aqui, e que sou eu? E para amar demais, linda e definitivamente amar, não precisa de frescura ou enganação. A palavra bonita é dita com o olhar, o presente maior está na presença, as juras eternas estão no nosso compromisso cotidiano. Amor matuto, amor de cabra que faz da mão calejada uma flor. E esse cabra sou eu...
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