Admito que me enganei. Criado batendo baba na praia, em campos de terra, quadras de cimento e também dentro de casa, nunca soube por que Pelé se referia a ele mesmo na terceira pessoa. Na verdade, sempre achei que sabia o motivo. Tinha certeza que a motivação de Edson era transformar o jogador Pelé, Rei do Futebol, em uma lenda, em um mito tão inalcançável aos humanos quanto os da Grécia e da Roma antigas. Tolinho eu. Tolinho você, se pensava igual.
Até que na semana passada, Edson revelou, ainda que involuntariamente, o verdadeiro motivo da existência do seu alterego. Foram necessárias quase 30 primaveras, mas enfim entendi: é o oposto do que eu disse antes. O objetivo não é exibir Pelé; é esconder Edson, isto sim, sem dúvida, um grande serviço prestado à população brasileira.
Pelé (na verdade Edson), calado, é um poeta, como definiu Romário em seu gol mais bonito entre os mil e poucos que marcou. Mas Edson resolveu falar e, dessa vez, não abriu a boca só para errar os palpites de quem vai ganhar a Copa, como faz de quatro em quatro anos. Deixou de ser poeta para ser um estúpido ao criticar o goleiro Aranha, do Santos, por denunciar o racismo, um problema recorrente na sociedade brasileira e, por tabela, nos estádios do país.
Seguindo a lógica de Edson, se o racismo é comum desde os anos 60, quando Pelé jogava, então não deve ser combatido nem denunciado. Na visão de Edson, o goleiro Aranha deveria ter se calado, pois “quanto mais se falar, mais vai ter racismo”. Na visão deste colunista, Romário tem razão.
Que Pelé e o senhor Edson Arantes do Nascimento não apoiem a atitude de Aranha, vá lá. É compreensível que um senhor nascido em 1940 tenha uma visão de mundo diferente do goleiro santista de 2014, nascido em 1980 – na esfera internacional, o racismo virou pauta a partir dos anos 1960, nos Estados Unidos. É normal que Pelé tenha tomado a decisão de se calar quando ouviu alguma torcida adversária chamá-lo de “macaco e crioulo”, como disse que aconteceu várias vezes. Ele e muitos outros fizeram assim. Mas a sociedade se transformou. E por isso não é aceitável que Edson, aproveitando a notoriedade que a mídia lhe dá graças a Pelé, condene a atitude de Aranha. Com certeza, Romário tem razão.
Edson inverteu os valores e criticou o goleiro do Santos, que “se precipitou um pouco em querer brigar com a torcida”. Não criticou os torcedores racistas, simbolizados na imagem da torcedora que chama uma pessoa de “macaco” aos gritos e acha que aquilo normal, é do jogo. Para Edson, "o torcedor, dentro da sua animosidade, grita mesmo”. Simples assim. Talvez Edson ache apenas que eles se confundiram, afinal, aranha e macaco, tudo é bicho.
E, assim, jogo após jogo, vamos achando normal ter jaulas para separar uma torcida da outra, quebra-quebra entre gangues dentro de estádios e outras formas de violência em uma sociedade que a cada dia cultiva menos amor e mais ódio. O incêndio – supostamente criminoso – que atingiu parte da casa da torcedora gremista que chamou Aranha de macaco na sexta-feira passada (15 dias após o episódio no estádio) é mais um entre tantos exemplos de violência injustificada. E, neste caso, ainda pior que o racismo cometido por ela.
Rainha de Chuteiras
Leitura leve, muita informação e temática diferente da maioria dos livros sobre futebol, A Rainha de Chuteiras – Um Ano de Futebol na Inglaterra, escrito por Marcos Alvito, é uma boa para iniciar a semana. O autor é um historiador que passou um ano na terra da rainha na temporada 2007/2008 e sabe contar boas histórias sobre a liga mais valiosa do planeta, embora a seleção seja um fiasco.