Rangel Alves da Costa*
Igual pepita dourada, pedra preciosa que se esconde nas entranhas para dificultar o encontro da mão humana, assim é a fruta araçá no seu mistério de vingar longe do alcance de qualquer um. E há razão para tal. Não é qualquer olhar que merece descobrir sua mina, não é qualquer mão que merece tocar no seu corpo, não é qualquer boca que merece saborear de sua carne macia, docinha, irresistível. Mas uma vez encontrado, eis a sorte grande de comprazer-se com a dádiva maior da natureza.
No primeiro rascunho que Caminha fez de sua famosa Carta, logo no início havia uma indicação clara do que havia encontrado adiante do litoral: “Aqui se plantando tudo dá, mas nada igual a um pequeno fruto encontrado ora avermelhado ora amarelado que surge como olhos enamorados chamando ao deleite do melhor sabor que pode brotar das entranhas da natureza. El-Rei, diante de tão dadivosa doçura e prazer de senti-lo deleitando a alma, certamente trocaria vossa coroa por um punhado desse reino araçá de valor inestimável. E haveremos de fazer justiça ao Criador. Ao criar o araçá, outra coisa não fez senão povoar as terras distantes com a fruta cuja semente fora trazida do próprio reino celestial. Aqui também mui ouro e prata e outras tantas riquezas, mas nada igual a essa frutinha que os nativos devotadamente chamam araçá, que na língua tupi significa aquela que tem olhos”.
El-Rei, pela simples menção de trocar o seu reino, certamente acharia mais prudente permanecer em Portugal, mas exigiria de Caminha provas daquela inestimável descoberta. E tudo se confirmaria como verdadeiro. Por consequência, talvez o araçá antecipasse em três séculos a mudança do reinado português para o Brasil. Não seria as forças napoleônicas enxotando a família real além-mar, mas tão somente um reinado inteiro se embrenhando nas matas em busca de araçá.
Eu, humilde sertanejo de Poço Redondo, que nada tenho além da lua imensa e do sol maior, se reino tivesse certamente que o trocaria por uma cuia de araçá, principalmente agora quando está cada vez mais difícil encontrar a deliciosa frutinha. O problema é que não há reino, trono ou potestade que possa superar o delicioso valor que possui essa frutinha miúda chamada araçá. Parodiando as palavras santas, afirmo sem medo de errar que nem Salomão, em toda sua glória, possuiu algo mais precioso que um araçaizeiro na estação propícia a se derramar de seus frutos dourados.
E digo mais: ainda que olhes para os lírios dos campos ondulando ao sabor da aragem do entardecer, e neles aviste a brandura da vida e a paz em poesia, mesmo assim será modéstia visão se comparada ao encontro com um pé de araçá quase escondido no meio do mato e carregado de bolinhas amareladas. Por que não é somente a visão que encanta, mas todo o corpo, toda a alma e todo o espírito, que se devotam àquele fruto tão pequenino e tão saboroso.
Há um segredo no araçaizeiro. Nasceu na família das goiabas e das jabuticabas, porém se desgarrou. Dizem que por ser tão miudinha, suas parentes viviam caçoando de sua aparência e por isso mesmo se afastou entristecida para o meio do mato. Mas como recompensa divina lhe foi dado sabor tão delicioso que suas primas passaram a parecer insossas ante o seu paladar. Como moça pura, recatada e singela, preferiu continuar na solidão da mata a viver pelos arredores citadinos e na avidez de famintos pelo prazer da mordida.
O seu nome vem do tupi guarani e significa “fruto que tem olhos” em alusão as sépalas que dão a aparência de olho no fruto. Existem muitos tipos de araçá, sendo os principais o vermelho e o amarelo, mas é este último que verdadeiramente encanta e fascina. Daí que se alastrou sertão adentro a narrativa de que Antônio Conselheiro, na sua caminhada de pregação arregimentando fiéis para o seu mundo prometido, só quebrava seu jejum fechado quando alguém lhe oferecia araçá. E certa feita, talvez em delírio causado pelo estonteante sabor, falou de boca cheia que doce como o araçá seria o reino dos céus.
Já Virgulino Lampião, também reconhecidamente místico, pois devoto de santos e principalmente do Padre Cícero de Juazeiro, afirmava que seria deserdado do bando todo aquele que tratasse com descaso um pé de araçá. Comia de mão cheia e exigia reverência porque aquela fruta representava a limpeza da alma e o guarnecimento do corpo contra os perigos mundanos. Em verdade, não há sertanejo que não seja devotado ao araçá. Ou era, pois se já muito difícil de ser encontrado no passado, agora se tornou verdadeira raridade.
Por isso que se reino eu tivesse, trocaria com brasão e castelo por uma cuia de araçá. Em meio a sabores tão difíceis de ser engolidos, em meio aos sais e venenos em tudo, somente aquela frutinha para fazer renascer o prazer pela vida. Encho a boca d’água e sinto uma saudade danada. Que qualquer dia me chegue assim, além do sonho.
Poeta e cronista
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