Paulo Fernando Silveira
As rádios comunitárias vieram para ficar. E com lei ou sem lei, elas vão funcionar. E o Judiciário, pelo menos boa parcela dele, já está convicto de que não pode mais o País ficar dependendo apenas de leis, quando um direito fundamental está em jogo.
Vou resumir o meu entendimento sobre rádios comunitárias, de acordo com a Constituição Federal. O que vou dizer poderá parecer a alguns uma heresia, outros ficarão assustados. Mas eu pretendo expor o que há de melhor na doutrina constitucional e dar a visão real dos direitos fundamentais. A lei das rádios comunitárias, essa lei que fere, que viola os direitos fundamentais, ou que cuida de direito fundamental, é uma lei suspeita. Nós temos que partir desse princípio. A lei é suspeita. Então, antes de dar prosseguimento à análise da lei, temos que questioná-la. Isso é fundamental. E para entender isso, é preciso que nós conheçamos a nova dimensão do Estado. O que é o Estado, a função do Estado, temos que verificar os desvios que ocorrem no Brasil, os quais a maioria nem percebe, porque são desvios políticos. Por quê?
O homem nasceu livre e detentor de toda a liberdade. Mas, evidentemente, o homem é um ser social, como dizia Aristóteles, e vivemos em sociedade. Na pequena comunidade, o homem individual, com toda a liberdade, passou a ser um homem civil, à medida que ele se casou e manteve laços com outras famílias. Essa comunidade crescente se transformou numa comunidade política, à medida que precisava, de um lado, colocar ordem interna nas relações individuais e de família e, do outro lado, se defender das tribos e dos adversários externos. À medida que se criou a sociedade política, surgiu a necessidade do Estado. O Estado, no início, foi representado pelo próprio chefe da tribo, personificando o Estado político e, ao mesmo tempo, ele era um Estado individual. Doutrinas não faltaram para dar legitimidade a esse poderio, às vezes de vida e morte, que tinha esse chefe tribal sobre os membros da tribo.
Com o decorrer do tempo, nós tivemos os reis, os monarcas absolutos e essas monarquias foram buscar na Bíblia o seu fundamento, ou seja, a origem divina do poder. Ninguém poderia ir contra o monarca porque estaria indo contra Deus, porque o monarca estava representando um poder dado por Deus ao homem, como deu a Noé, a Abrão, a Davi, a Salomão, era uma personificação do poder. Jesus mesmo disse a Pilatos que o poder que ele tinha havia sido dado por Deus. Essa filosofia, então, sustentava os reis. Mas, paradoxalmente, ao sustentar os reis, sustentava a Igreja, que tinha de se acoplar ao Estado, por causa da filosofia que dava suporte ao poder dos reis. Com o tempo, a própria Igreja começou a dominar os reis, não querendo que o poder temporal se submetesse também ao poder espiritual. Nós vimos o ápice do poder divino na Inquisição, quando a Igreja dominava o Estado e até o rei tinha medo da Igreja.
Mas, com essa dominação – e nós vimos o exemplo de Henrique VIII, que queria casar com Ana Bolena, mas o papa não autorizava; ele se casou e seccionou o liame com o Papado. Aí se verificou no decorrer da história, que, na realidade, o poder temporal nada tinha a ver com o poder espiritual, que o poder do rei não dependia de Roma. Mas aí, mais uma vez, paradoxalmente, caiu-se na contradição. Pensava-se que o poder do Rei vinha de Deus mas se mostrou que esse poder não precisava de Roma, que era o representante de Deus, pois não tinha suporte intelectual para a dominação do Rei. E aí vieram as teorias iluministas do Século XVIII, quando se verificou que o poder, na realidade, vinha do povo. Diretamente do povo e não do rei. E aí o poder absoluto do monarca era incompatível com esse poder, que vinha do povo. O que aconteceu?
Dentro dessas doutrinas, surgiu a doutrina contratualista de Russeau, em que o indivíduo, na realidade, detentor de todo o poder, cede uma parcela desse Poder para o Estado, mas reserva a ele todos os direitos fundamentais, inclusive de controlar o Estado. Porque o Estado aí passa a ser uma criação a serviço do próprio indivíduo detentor da liberdade. Assim, quem executa a atividade estatal está a serviço do povo e não contra o povo, porque ele não tem poder próprio, como tinham os monarcas. Fiz essa explanação para que fique bem entendido que o poder, na realidade, reside no indivíduo e na sociedade. O estado é instrumental, no sentido de se alcançar a paz social e o bem-estar comum. O Estado é instrumental e a lei é muito mais instrumental porque é uma emanação da vontade política. Numa democracia como a do Brasil, numa República, emanação da vontade política dos deputados e senadores que representam o povo. Assim, essa lei, que é a exteriorização dessa vontade política, jamais pode ser uma lei voltada contra o próprio povo, porque, do contrário, nós teríamos uma contradição muito grande. Quando a vontade do representante do povo é maior do que a do povo, é um absurdo. Então, no Brasil, desde a República, de 1891 até agora, tivemos uma sucessão de leis feitas historicamente por grupos minoritários, oligárquicos, no poder, no Congresso, fazendo leis para uma nação continental, como a do Brasil, mas leis voltadas para os interesses dessas oligarquias minoritárias. Leis que ferem, de um modo geral, o interesse básico do povo e a sua vontade, que está na Constituição Federal.
Lei injusta, lei inconstitucional
Por incrível que pareça, o erro maior talvez seja das próprias universidades, onde nós, juristas, nos formamos, onde a gente aprende unicamente a falar de lei e aprende a interpretar apenas o conteúdo da lei, tal como, sem desmerecer, um técnico leigo. A lei fala em três quilômetros, a lei fala na altura de 30 metros ou 10 metros da antena irradiante. Ora, precisamos primeiro questionar se essa lei é válida. Porque precisamos primeiro controlar o Estado e controlar o poder político que domina o Estado.
O Brasil optou claramente por ser uma República Federativa e é uma democracia. A democracia pressupõe que a lei seja feita pelos representantes do povo, logicamente representando a maioria do povo pelo voto, em benefício da maioria do povo, e que a lei seja justa. Nós ouvimos o professor Fernando falar que acha que a lei é injusta. Quando a lei é injusta, ela é inconstitucional. Porque nenhum povo vai dar a si próprio uma Constituição injusta. Se a lei não está de acordo com a justiça que está na Constituição, essa lei é inconstitucional seguramente. E para isso, quem está incumbido de verificar a justiça da lei é o Judiciário, através do devido processo legal, na sua dimensão substantiva.
Esse princípio o americano aplica há 200 anos, e na Inglaterra, desde 1.215. Infelizmente, aqui no Brasil, os advogados de um modo geral desconhecem essa visão de justiça e ficam no legalismo. Hoje eu posso dizer sem medo de errar que tantos advogados, como os promotores e procuradores da República, como os juizes, são escravos cervis da lei. E como eu mostrei para vocês que a lei, aqui no Brasil, de um modo geral, representa oligarquias e é feita por minorias, a benefício das próprias minorias. Quando nós atuamos fazendo só cumprir essas leis, nos tornamos braço opressor do povo, a favor das minorias. Essa não é a função de um poder político, que é o Judiciário, que como poder não eleito tem a obrigação primordial de controlar os outros dois poderes eleitos – sujeitos à eleição e, portanto, mais suscetíveis à corrupção – e a se dobrar pelos interesses, inclusive daqueles que financiam as campanhas. O Judiciário, como poder não eleito, tem essa função primordial de controlar os outros dois poderes e isso está dentro de uma doutrina chamada freios e contrapesos, também adotada nos EUA e na Inglaterra com sucesso. Infelizmente, aqui no Brasil, sequer conhecida da maioria dos juristas.
Vou passar rapidamente algumas transparências, apenas para mostrar a vocês o quanto o Brasil anda desequilibrado com relação ao poder político. Depois, vocês vão entender a leis das rádios comunitárias, onde se insere o problema das rádios comunitárias dentro do equilíbrio político do País. Porque, não se iludam, o problema é político. Não é jurídico porque o jurídico, na realidade, é mera expressão do político. Toda lei é a vontade dos deputados, senadores e do presidente da República, que sanciona, e do Judiciário que a faz ser aplicada. Então, trabalhamos com política, o tempo todo, tanto na Constituição quanto nas leis.
Dentro do federalismo, esse poder político, que antigamente pertencia por todo ao rei, ao monarca absoluto, nas democracias, foi dividido. É como um bolo de aniversário que tem pelo federalismo um corte horizontal, em que o poder é dividido entre a União e os Estados. Dentro do princípio do federalismo, e está adotado aqui na Constituição, não há como fugir desse princípio, a União tem poderes restritos onde haja o interesse nacional ou interesse de mais de dois estados, como o ICMS, de modo que a atuação da União, em qualquer lei, assunto ou matéria, já que nós adotamos esse princípio, e o princípio vale mais do qualquer norma, mesmo constante da Constituição. Alguém pode dizer: lá no artigo 223 diz que compete à União conceder as autorizações para as rádios comunitárias. Isso é uma norma e eu vou mostrar também a hierarquia das normas, dentro da Constituição. O princípio é mais do que a norma.
Então, o princípio federalista diz isso: ´´A União, poderes restritos e limitados.´´ De um modo geral, interesse nacional ou interesse de mais um estado. Então, é uma atuação restrita e os Estados membros é que têm uma atuação ampla. Nós vimos, a rádio comunitária depende do relevo do município. Como é que pode uma lei nacional falar em 25 watts, antena irradiante de 30 metros, por um burocrata sentado em Brasília, se o problema é local, depende do relevo para saber quantas rádios aquele município comporta. Qual a altura da antena ideal, como uma não interceder na outra, isso é um assunto municipal. Quando há um conflito dentro do federalismo, e esse é outro engano no Brasil, todo mundo acha que a lei federal vale acima da lei municipal/estadual. Isso não é verdade.
A lei federal só tem validade quando está dentro do princípio federalista. Fora daí, ela não vale mais do que a lei municipal porque cada ente político tem sua esfera de atuação e que tem que ser respeitado para dividir aquele poder político do monarca. Essa foi a primeira forma de divisão do poder, ao contrário da ditadura, da centralização demasiada de poderes, e é o que temos aqui no Brasil. Um executivo excessivamente poderoso e usurpador de competência dos Estados, chegando a esvaziar a competência dos Estados, de tal forma a transformar os governadores em meras autarquias. Os estados seriam meras autarquias da União, quando não é isso que está na Constituição Federal. O que temos no Brasil é exatamente o inverso do princípio adotado. Nós temos a União, que usurpou todas as competências. No Artigo XII da Constituição compete privativamente à União, legislar sobre tudo, inclusive comunicações.
No Artigo 223, ela detalha que só a União pode dar concessão nessa área. Está ferindo esse princípio, porque ela não pode agir, ela não pode ser ampla, a atuação da União tem que ser restrita. Aqui no Brasil, está descalibrado. A União se apossou de quase todas as competências, o Estado quase não tem, e o Município muito menos. O que acontece? A Nação fica paralisada, esperando as decisões de Brasília. Brasília decido tudo burocraticamente, para um país continental, e faz leis que não pegam, não têm conexão com a realidade. Fere-se esse princípio, que precisa ser combatido para mantermos o equilíbrio do poder político.
Vendo o bolo do poder, além do corte horizontal, que originou o federalismo, esse bolo foi dividido num corte vertical, dividido em três. O poder que era do rei, absoluto, precisou ser dividido em três partes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Partes iguais, porque são três poderes políticos. Três poderes com funções bem claras e definidas na Constituição. Mas, o que acontece aqui no Brasil? O executivo usurpou as competências do Legislativo, através das medidas provisórias. E a Constituição que deu aquele instrumento ao Executivo, para socorrer em emergências, porque tem que ser em casos emergenciais, a Medida Provisória, eles transformaram aquilo em rotina, então um legisla no País por todos, ou seja, isso não é democracia mais. Isso é usurpação de poder, isso beira a ditadura, quando um decide e baixa um Decreto com força de lei, tem força de ditadura. Descalibrou novamente um princípio colocado na Constituição, da divisão dos poderes, e o Executivo Federal ficou enorme e poderoso. O Legislativo perdeu parte da sua competência porque as leis, a matéria quase toda vem por Medida Provisória. O pior de tudo, o Judiciário, que tem uma função magna na Constituição, de, como poder não eleito, controlar e segurar os outros dois poderes, o Judiciário não exerce adequadamente a não ser simbolicamente esta função. Outro dia, eu fiquei estarrecido de ver um Ministro do Supremo Tribunal ameaçar: ´´se acontecer isso, o Supremo vai agir como Poder.´´ Desde quando tem que ameaçar? Tem que exercer o Poder Político realmente como poder político.
E o Judiciário, então? Como ele ficou só interpretando a lei, esmiuçando a lei e de um modo geral, só mandando cumprir as leis, deixou de ser poder. Ele é um órgão mais ou menos autônomo, com pouca autonomia e muito medo, que não cumpre sua função. Nas escolas, a gente estuda Direito Civil, Direito Comercial Civil, Direito Processual, mas tudo com base na Lei. Esquecemos a Constituição. Tanto que eu advoguei 18 anos e raramente usava a Constituição Federal. Hoje, a maioria dos advogados, só a partir de 1988, é que começou a ter consciência de Constituição e de usar a Constituição. Está sendo usada mais pelos empresários para fugirem dos tributos, aí usam os princípios constitucionais todos. Mas o povo de um modo geral não usa a Constituição para resguardar seus direitos básicos. Nós vimos que, no federalismo, não funciona bem porque a União usurpou a competência, na divisão do poder, não funciona bem porque o Executivo também tomou o poder do Legislativo e o Judiciário não exerce sua função. Essa é uma visão do que deveria ser. Nós teríamos uma República com três pés equilibrados e, evidentemente, o banco seria estável. No momento em que o Executivo é uma perna maior do que as outras duas, esse banco vai ficar descalibrado e cambeta. É o que nós temos no Brasil.
Números mágicos
Pior de tudo, naquela função dos checks and balance, que cada poder exerce sobre o outro controlando. Por exemplo, o Legislativo faz uma lei, o Executivo pode vetá-la. E o Judiciário pode julgá-la inconstitucional. São controles. O Ministro do Supremo vai ser indicado pelo Presidente da República, mas só assume depois que o Senado aprovar. São os checks and balance. O que acontece no Brasil? Também não são exercidos adequadamente. Exemplo: nos EUA, um deputado ou senador responde criminalmente, como qualquer cidadão. Se ele alegar a imunidade parlamentar e o Judiciário verificar que o crime tem relação com a atividade parlamentar dele, o Judiciário pode até mandar arquivar o processo. Mas quem vai decidir se é crime político ou não, se há imunidade ou não, é o Judiciário.
Aqui no Brasil, o Supremo Tribunal permitiu que o seu poder, o Poder Judiciário, fosse diminuído, quando pede autorização para processar deputado e senador. Ele não tem que pedir autorização. O processo tem que correr normalmente e o próprio Judiciário vai decidir se é político ou não. Nos Estados Unidos, também os deputados e senadores tentaram alocar para eles o direito de decidirem, mas a Suprema Corte deu um basta. Quem decide é o Judiciário. Então, é questão também de cultura e postura.
Quelsen, chamado de ´´o mestre de Viena´´, um grande positivista – eu não tenho muita admiração pelos positivistas, porque são escravos da lei; os juizes, são, de um modo geral, positivistas. Se tiver escrito na lei ´´a altura máxima é de 30 metros´´, ele não aceita com 25. Se tiver escrito três quilômetros, tem que ser três quilômetros. Eu vou dar um exemplo do perigo disso. Em Uberaba, tinha uma lei municipal dizendo que não podia ter posto de gasolina a menos de 800 metros um do outro. Um indivíduo queria montar seu posto, foi à Prefeitura, a Prefeitura negou. Ele entrou no Judiciário Estadual, que falou: ´´a lei diz 800, não tem 800´´. Então, negou. Recorreu ao Tribunal de Minas, o Tribunal falou a mesma coisa. Exige 800, não tem 800, não pode.
Vieram a mim porque era uma área anexa ao aeroporto e a Infraero estava envolvida. Eu fiz a seguinte pergunta: por que 800? Qual o interesse público que a lei visa resguardar? Seria, digamos, a 50 metros de um cinema, de um hospital, seria razoável, ou 100 metros. Mas, por que 800? Então, feria a livre concorrência. Autorizei o posto, depois fui à Câmara Municipal, demonstrei a eles o equívoco e anularam a lei. Hoje, não há mais essa lei. Porque esses números mágicos, que os burocratas colocam nas leis, têm que ser questionados. Porque 25 watts na rádio comunitária? Há algum interesse público a resguardar, acima de 25 watts?
Eu me preocupo, enquanto juiz, com a proteção aos vôos. Qual o mínimo que poderia proteger a uma possível interferência? Porque não basta falar: derruba avião. Nós não podemos trabalhar só no campo das idéias, temos que trabalhar no campo prático. Derruba? Então, me traga um laudo técnico dizendo que, digamos, a partir de 100 watts ou de 200 watts, realmente interfere. E a parte contrária, pelo devido processo legal, tem direito de demonstrar, às vezes, com a perícia particular, que aquilo é uma balela. Então, não devemos aceitar as coisas só porque vieram escritas na lei.
O princípio, eu disse no início, do Direito Constitucional, é que as leis que cuidam ou interferem nos direitos fundamentais, como é a informação, são leis suspeitas. Significa dizer que o Estado só pode interferir numa atividade fundamental ilícita, demonstrando interesse público. Exemplo: mototáxi ou perueiros. Dizem: são clandestinos, não têm lei. Isso é balela. Trabalhar é um direito fundamental do indivíduo, que precisa viver, ganhar a vida. O Estado é que, se tiver interesse de regulamentar aquela atividade, um interesse público real, vai dizer ´´tudo bem, o mototaxi vai funcionar. Mas eu vou determinar os pontos, a cor, o uso de capacetes, se pode transportar menor ou não´´. Aí tudo bem, está dentro da esfera de competência. O que eu quero mostrar, acima de tudo, é que os direitos são naturalmente exercidos e a lei, para impedir o exercício de um direito, tem que estar escorada num relevante interesse público. Aqui no Brasil é o contrário: uma Associação pede, digamos, autorização à União, para criar uma rádio comunitária; a União não dá, não nega e nem justifica. Isso é arbítrio. O Judiciário vai dizer: ´´já que você não dá nem justifica, vamos dar´´. É o que nós estamos fazendo e com sucesso.
Em Uberaba, na minha região, tem mais de 100 rádios comunitárias funcionando, não tem um problema sequer. Inclusive no aeroporto, eu fui pessoalmente conversar lá, uma não interfere nas outras. Muito pelo contrário, lá houve um caso, até foi noticiado, de alguém das rádios ditas concessionárias que contratou um indivíduo para ficar no alto de um prédio, interferindo nas rádios comunitárias. Quando eu disse que a lei é suspeita, vocês vêem essa lei que fala assim, que a rádio comunitária, se tiver sofrendo interferência, não pode se socorrer do Judiciário. Desde quando o indivíduo sofre um prejuízo e a Constituição diz que qualquer um, que tiver ameaço ou dano de direito, pode procurar o Judiciário, o indivíduo vai ficar desprotegido. É uma lei evidentemente suspeita e inconstitucional. Mas, voltando, o Kelsen é um positivista, ele traçou a hierarquia das leis, acima de tudo está a Constituição, ela é que dá validade às leis. Qualquer lei que quebre ou viole um princípio constitucional ou uma norma constitucional, não vale. O regulamento segue também essa hierarquia. Agora, se vocês verificarem essas leis e regulamentos das rádios comunitárias, vocês vão notar que a lei não fala quase nada. De repente, os regulamentos começam a impor ônus cada vez mais fortes sobre o indivíduo, ilegalmente. Porque se a lei não exigiu aquele ônus, o regulamento não pode exigir. Vão dificultando a vida, o burocrata vai dificultando a vida do indivíduo através de regulamentos, e não da lei, que também teria que guardar conexão com a Constituição Federal.
Concessão deve pertencer ao município
O Canotilho, um grande constitucionalista português, mostrou o seguinte, e isso é válido para nós, que temos uma Constituição casuística. Nos Estados Unidos, a Constituição é pequena, é uma Constituição de princípios. Eles trabalham com princípios e o Judiciário vai definindo o que pode e não, até onde a lei vai, modernizando o entendimento da lei, com base na Constituição, que é a mesma. Lá só tem 27 emendas em 200 e tantos anos de existência. Mas, nós temos uma Constituição casuística, mais parece uma lei. Qualquer coisa, eles jogaram aqui só para ficar constitucional. E aí é válido esse entendimento do Canotilho, que também aqui, dentro da Constituição, tem uma hierarquia. Primeiro, estariam os princípios estruturados, seria democracia, federalismo, livre concorrência, direitos fundamentais. São princípios pelos quais o Estado se estruturou e vocacionou, ou seja, o povo quer viver em uma democracia, numa República, com eleição. Não quer a monarquia, isso são chamados princípios estruturantes, estão acima de tudo, menos dos direitos fundamentais. Estão acima dos princípios estruturantes, porque acima do Estado, os indivíduos. Ainda que viesse uma lei falando que é permitido matar o aleijado, digamos, esse dispositivo constitucional não valeria, porque acima disso estaria o direito fundamental. Depois, vêm os princípios constitucionais gerais, os especiais e as regras. Portanto, o fato de estar escrito no Artigo 223 que compete à União outorgar a concessão é uma regra, uma simples regra, mas nós vimos que essa regra fere o princípio do federalismo, que separa as competências. Então, a rádio comunitária, qual a sua abragência, não é um município? Qual sua vocação, não é ser municipal, atingir uma comunidade, não é ser da comunidade? Agora, a comunidade pode ser uma cidadezinha de mil habitantes, e mil metros pode cobrir a comunidade, como pode ser em São Paulo, em que uma rádio tem que abranger um bairro enorme, que não tem nada a ver com mil metros, e a lei aí não vale. Nem mesmo a regra constitucional, que dá essa competência à União, não vale. Porque está ferindo um princípio, então é inconstitucional. Vale, mas quando a União vai disciplinar rádios que atinjam mais de uma comunidade, mais de um Estado, que atinjam um interesse nacional, aí ela tem o poder de dar concessão. Fora disso, sem receio de errar, eu posso te dizer o seguinte: a concessão de rádios comunitárias pertence, unicamente, ao município. Agora, eu concebo que a União possa fazer uma legislação de normas gerais, dizendo inclusive, acima de 200 watts ou 250, o que for necessário para proteger a aviação civil, fica com a União, porque há um interesse nacional, digamos, e abaixo disso fica com os municípios, que vão disciplinar de acordo com o relevo do município, que vai dar a autorização para essas rádios funcionarem.
Dentro da concepção do direito americano, o presidente da República só emite o chamado Executive Order. As Agências podem regulamentar com força de lei, só que as Agências são diferentes da Anatel. Aqui no Brasil, a Anatel é uma agência governamental, do Executivo, que o próprio Executivo põe e dispõe. As Agências americanas, e lá há mais de 100 agências, cada uma cuida de um assunto específico, por exemplo, meio ambiente, FBI, NASA, são todas agências, mas o Legislativo é quem dá a dimensão da agência. O Executivo apenas indica o administrador e, mesmo assim, o Presidente da República não pode tirar o indivíduo sem que ele cometa algum ato de improbidade, ele não pode tirar só por não gostar da cara do indivíduo. O Judiciário controla se essas agências estão atuando dentro daquilo que foi concedido pelo Legislativo. As Leis existem, Leis Estaduais e Federais, e aqui tem uma parte importante, o povo só pode ser tributado por lei. Eu volto a dizer o quanto nosso Judiciário é insignificante, o Supremo Tribunal admitiu que o Presidente da República pode baixar uma Medida Provisória Tributária. Você liga a TV, no dia seguinte você está pagando mais imposto porque saiu uma Medida Provisória do Presidente da República, sacramentada pelo Judiciário, sem passar pelos representantes do povo. Isso é uma coisa que jamais um americano ou um inglês aceitaria. Porque fere o princípio da representação. Lá sim, o Judiciário tem o mesmo equilíbrio dos outros, principalmente porque as decisões do Judiciário, quando majoritárias na Suprema Corte, têm força de lei e atingem o administrador.
Aqui no Brasil, o Supremo decide um caso, a Receita Federal, o INSS, as autoridades de um modo geral, nos casos iguais, idênticos, continuam. Aquele foi julgado? Foi, ele ganhou. Mas você vai lá, ele nega. Não respeita o precedente judiciário. Esse é o problema maior do Brasil. Só na minha Vara, nós temos 10 mil processos, que eu mal dou conta de administrar, porém a maioria repetitivos, assuntos que o Supremo Tribunal poderia julgar rapidamente e ter uma solução para o País com força de lei, não para os juizes, porque esses, de um modo geral, já acompanham o Supremo, mas principalmente as autoridades administrativas. Só para dar um exemplo, na Universidade de Uberaba, todo ano entravam uns 500 mandatos de segurança, com relação aos alunos, ora porque queria fazer uma prova e a Universidade não deixava, ora porque queria fazer uma matrícula e estava devendo. Tinha cerca de 500, mas a maioria dos assuntos já estavam julgados, não só por mim, como pelo Tribunal. Eu chamei o Reitor, nos autos dei um despacho, convocando-o para uma reunião comigo e dizendo que iria aplicar nele uma penalidade de má fé, em favor do aluno, em cada processo uma multa e que se ele não viesse, a Polícia Federal já estava requisitada para buscá-lo. No dia seguinte, os advogados dele foram lá para resolver o problema e eu disse: a única coisa que eu quero é que vocês cumpram os precedentes, vocês têm direito a recorrer, de não concordar com a decisão do juiz de 1º grau, desde que recorram, agora uma vez que eu dei uma decisão e vocês não recorreram dela, foi ao Tribunal, o Tribunal julgou e vocês não recorreram, aquilo vale como precedente. Vocês têm que obedecer para os casos idênticos. No outro dia, encerramos 450 processos.
Apreensão criminosa
Comparem o quadro americano, de divisão do poder, e veja se a nossa Constituição, as normas e os princípios têm leis complementares de Medidas Provisórias e Leis, isso engessa o País porque qualquer lei complementar não pode ser modificado por Medidas Provisórias ou Leis, só por outra lei complementar. Vai virando um caos. Aqui, não se vê onde está o Judiciário, o Judiciário está fora do contexto da formação do Direito Brasileiro, esse é o nosso grande problema.
Primeiro, temos que entender isso para depois discutir a lei das comunitárias, porque senão vamos discutir as minúcias de uma coisa que já está errada, desde o seu início. Então, primeira coisa nessa lei comunitária: a competência da União? Eu acredito que não.
Outra coisa: a Anatel tem lacrado as rádios comunitárias e tem feito isso de uma maneira criminosa. Por dois motivos: primeiro, o Supremo Tribunal já decidiu que a Anatel não tem esse poder, porque veio na Lei que criou a Anatel um dispositivo dando a ela o poder de fazer busca e apreensão administrativas e o Supremo Tribunal já entendeu que isso é abusivo, porque fere o devido processo legal. Isso é, que você só possa sofrer uma sanção econômica ou de qualquer forma, depois que você tiver o direito de defesa. Então, alguém não pode chegar na sua rádio e lacrar. Primeiro mata, para depois julgar. É preciso chegar lá, autuar administrativamente a rádio, dar o direito de defesa, aplicar a sanção prevista na lei. Se analisarmos a lei das comunitárias, não tem esta sanção, nem mesmo na lei que criou a Anatel. Aí, diria alguém, tem um dispositivo da lei 417/1962, artigo 70, que fala que é crime criar uma rádio sem autorização da União. Mas temos que ver o seguinte, se a União não tem competência, aquilo já não é crime. Segundo, essa legislação, mesmo pondo 25 watts, altura irradiante 30 metros, sem que isso tenha embasamento técnico legítimo, também não vale.
Já fui juiz na Av. Paulista, fui em Ribeirão Preto, e tenho ido pelo Brasil inteiro cuidando das rádios comunitárias, portanto, estou tendo uma visão geral. Mas o problema está no Judiciário e há alguns conceitos errados. Um dos conceitos errados é o seguinte: às vezes, a pessoa entra com mandato de segurança, ou habeas corpus, e o próprio Ministério Público manda abrir processo ou diz o seguinte: a pessoa não provou que a rádio dela é de pequena potência. Está errado, o indivíduo, ao alegar que a rádio dele é de pequena potência, principalmente no processo criminal, no qual a prova pertence ao Estado, o indivíduo não tem que provar que é inocente, todos nós somos inocentes, o Estado é que prova que a gente é culpado. Então, se vai abrir um processo criminal contra uma rádio comunitária, primeiro tem que haver uma perícia naquela rádio provando que ela não é de baixa potência. Está tudo invertido aqui no Brasil, você é tratado como um criminoso, quando você devia ser um inocente. Os agentes do Governo e a Anatel, que está proibida pelo Supremo de fazer a apreensão, vai buscar a pata do gato para tirar a castanha em cima da chapa quente, vai atrás da Polícia Federal e chega lá e diz: vamos comigo apreender. Na realidade, ela está executando um ato administrativo, proibido pelo Supremo, utilizando a Polícia Federal, que na realidade, não queria entrar nisso, a não ser com ordem judicial ou mediante requisição do Ministério Público, o que raramente ocorre. Mesmo porque a Polícia não tem competência para aferir, pela simples falta de concessão, se aquela rádio é comunitária ou não. São dados técnicos.
Mudando todo esse enfoque, como eu falei de início, que eu falaria alguma coisa tida como heresia, mas temos que sair da caverna do Platão para a realidade. E deixar de trabalhar com mitos. Não é porque está escrito na lei, que aquilo é sagrado. Pelo contrário, sagrado é o direito fundamental do indivíduo. E nós temos que controlar o Estado, porque o Estado está abusivo, através das leis, cerceando o direito do povo. E o direito da comunidade, de se informar e ser informada é um direito sagrado. Eu diria mais: o povo vive sem Governo, mas o Governo não vive sem o povo, porque ele perde a legitimidade. Não há maior legitimidade neste País do que as comunidades terem as suas rádios para que o povo, na própria comunidade, discuta seus problemas, faça propaganda do seu comércio, dê as mensagens de interesse gerais, como vacinação, leve as notícias ao rurícola, entrose o rurícola à cidade, faça com que surjam novos talentos, seja como radialistas, políticos, vão debater o interesse da comunidade. Vamos criticar as ações sim, do prefeito, do juiz, da Câmara dos Vereadores, vamos debater, isso é democracia. Nós não podemos mais aceitar essa dominação de cima para baixo, porque saiu uma lei. Essa lei é suspeita, incondicional, tem vários defeitos e tecnicamente não traz nada que a justifique.
Já houve caso em que eu estava dando liminar de 50 watts, aí alguém falou ´´bem, a lei fala em 25´´. Eu falei: ´´me prove porque precisa de 25, porque o limite tem que ser 25, me traga uma perícia de que 50 interfere em alguma coisa´´. O Ministério Público não traz, a Anatel não traz, ninguém traz, mas todo mundo é contra. E há juizes que ainda têm a coragem de escrever que nega a liminar porque pode derrubar avião. Ou seja, trabalha com as idéias e não com os fatos.
Eu tenho por mim que é melhor você outorgar o direito e o exercício do direito, para depois, com calma, com tempo, ir definindo o que vem a ser rádio comunitária realmente. Eu acho que no campo legislativo, a solução me figura fácil se pudéssemos inserir na lei atual apenas dois artigos, que para mim, eliminariam todos os conflitos, embora um deles, não sei se o próprio legislativo vai querer abrir mão do seu poder político, que eu acredito ainda tem, injustamente assenhorado.
Um deles é colocar na lei 9112 um dispositivo só nesse sentido: não constituir o crime do artigo 70, o crime da Artigo da Lei 917/62 não se aplica às rádios comunitárias. Esse seria um dispositivo para eliminar essa ação da Polícia Federal, do Ministério Público. Com isso, cairia para a área administrativa. Agora, como eu defendo o federalismo, eu acho que a rádio comunitária não é assunto da União, mas por outro lado, há a necessidade de preservar interesses da União, como seria a segurança de vôo. Nós deveremos colocar um outro dispositivo, mais ou menos com o seguinte teor. Estou só elaborando aqui, de improviso, que abaixo de 100 watts ou 200 watts, independeria de concessão da União devendo o requerimento ser dirigido ao Executivo Municipal, que concederá os alvarás mediante o estudo do relevo do município, ou seja, nós definiríamos a competência federal, preservando a segurança de vôo acima de determinada potência. Isso é uma parte técnica, digamos, 100 watts ou 200 watts, não sei qual, e deixaríamos ao município, distribuir, mediante alvará ou licitação, no município, as rádios comunitárias daquele município e poderia até deixar o conceito de rádio universitária ficar em nível municipal. Dependeria, de um lado, do próprio Legislativo Federal abrir mão do poder de querer ser a última palavra sobre a rádio comunitária e estaríamos fazendo esta nação ser mais democrática, no momento que definiríamos ao município a competência para conceder os alvarás. Observando a realidade fática do lugar, eliminando esse problema de altura de antena, alcance da rádio comunitária, isso ficaria para o município.
Como a sociedade combate lei injusta
Eu entendo que democracia tem que ser vivenciada. Não podemos trabalhar na base dos temores. Quem representa o povo no município são os vereadores, maus ou bons, são eles. Nós temos que conviver com essa realidade, porque do contrário, não estaremos vivendo numa democracia. Agora, se um determinado município tiver influência de alguma família do prefeito ou dos vereadores, pode ser que sim, mas acredito que na maioria, vai haver licitação. Pode ser até um processo licitatório, municipal, aberto aos pretendentes. O que não podemos mais é ter esse controle da União, por dois motivos: primeiro, porque as rádios comunitárias, como eu já disse antes, vieram para ficar. E com lei ou sem lei, elas vão funcionar. E o Judiciário, pelo menos boa parcela dele, já está convicto de que não pode mais o País ficar dependendo apenas de leis, quando um direito fundamental está em jogo. Assim, a apreensão, por mais justa que seja, é igual ter medo que o analfabeto vote, porque ele vai votar tendenciosamente. Pode ser que sim, mas é votando que ele vai aprender a votar. É funcionando no município, porque lá tem uma fiscalização muito melhor.
Eu vou dar um exemplo de Uberaba, de três rádios concessionárias. Uma é de um filho de um deputado federal, outra é de um filho de embaixador, o outro adquiriu de um deputado federal, e dizem que o Nahas também tem uma rádio lá. Quer dizer, é muito pior ficar na mão de pessoas que a gente não sabe de onde vem, como conseguiu e quais os meios pelos quais obtiveram essas rádios. Sendo que no município, têm os jornais para acompanhar, pode fazer um processo licitatório, o povo está perto do vereador para criticar e se houver esse tipo de coisa, não votar nele na próxima vez.
O que eu gostaria que vocês pensassem, daqui para frente, é como a sociedade pode combater uma lei injusta, se vier uma lei desse tipo. Então não me assusta o fato de o Congresso estar fazendo Lei A, Lei X, que vai prejudicar isso ou aquilo, se na prática a sociedade tiver uma consciência de que aquilo que é injusto, aquilo que não é o correto, vai ser repudiado pelo Judiciário, porque o Judiciário tem o poder de anular essas leis. É nesse sentido que eu falei do Judiciário, não é que tudo vá ao Judiciário, mas quando a comunidade tem essa consciência, o que acontece nos EUA? As leis são apreciadas, politicamente apreciadas pelo Judiciário, o Judiciário declara inconstitucional e o país caminha. Então, o que vem, que venha mas nós tenhamos essa consciência de que podemos combater essas leis. Agora, com relação a essa forma de controle, eu acho que controle é dominação, quanto mais controle, mais forma de dominação. A comunidade controla primeiro pelos vereadores, pela Câmara Municipal, que é o poder legítimo de controle através de leis municipais. Se ficar inventando muito controle, vocês, por incrível que pareça, vão dar muito mais poder ao prefeito, para controlar tudo a gosto dele, do que vocês imaginam. Minha esposa era diretora de uma associação. Na Campanha do último prefeito, obrigaram essa associação a mandar uma correspondência para cada associado, a favor desse prefeito, sob pena de ele não dar mais nenhuma ajuda para aquela associação. Ou seja, uma associação civil apolítica, ficou política e dominada. Então, ao pensar em controles, tenham receio de controle porque todo controle é fator de dominação. Eu acho que cada sociedade vai escolher a forma de controlar dentro do município.
Também, com todo o respeito, não acho correto, já a priori, dizer que duas rádios para uma cidade pequena são suficientes. A comunidade é que vai dizer quantas rádios são suficientes para atender todos os segmentos, uma é da igreja católica, outra é da igreja protestante, outra é dos aidéticos, outra tem outro fator educacional. Por exemplo, em Uberaba, a própria Prefeitura pediu uma liminar e eu dei, para a fundação cultural ter uma rádio. Então, nós não devemos trabalhar a priori com limitações e com dominações. Eu acho que quanto menos controle, melhor, desde que seja dividido o poder para ficar em nível municipal o problema das rádios comunitárias. Inclusive, a definição do que é rádio comunitária, uma seara perigosa.
Eu entendo que a comunicação faz parte do direito da livre manifestação do pensamento e é um direito fundamental, que não pode ser coibido e nem extirpado pelo Estado como aconteceu no Brasil, onde as pequenas comunidades não têm nenhum veículo de comunicação e depende de uma autorização de Brasília que nunca vem. Isso está, evidentemente, inconstitucional. E, sendo um direito de amplitude, na realidade é um direito coletivo, enquadra-se ao meu ver, dentro das funções do Ministério Público. Por isso, eu não tive dúvida em afirmar, perante a nossa ilustre representante do Ministério Público Federal, que era o Ministério Público quem devia estar entrando com as ações civis públicas, pedindo liminares ao Judiciário a favor das rádios comunitárias. Afinal, as rádios comunitárias representam os mais legítimos interesses comunitários, mas o Ministério Público tem denunciado criminalmente os detentores das rádios comunitárias, então vai com agente da Polícia Federal, apreende e o Ministério Público Federal inicia a ação penal através de denúncias. O Ministério Público ignora que as comunidades estão clamando por Justiça, clamando por liberdade de expressão, há casos de abaixo-assinado com 10 mil pessoas pedindo a rádio comunitária com assinatura do prefeito, de todos os vereadores. O Ministério Público ignora tudo isso e entra com uma ação penal contra o indivíduo e ainda encampa os atos da Polícia, pisoteando a Constituição Federal.
Derruba avião?
As rádios comunitárias, pelo menos na minha região, e aí talvez haja a explicação do termo pirata e nem clandestinas não são, porque são registradas em cartório, com pessoas identificáveis e respeitáveis. E se houvesse a interferência nos aviões, admitamos essa hipótese, não seria simplesmente o caso de entrar em contato para resolver o problema? Em vez de querer cortar, por esse motivo, todas as outras? Quer dizer, há um problema localizado com uma rádio, que, eventualmente, interferiu, não é o caso de resolver aquele problema? Em vez de falar, elas interferem, então fechamos todas. Não está faltando maior diálogo para resolver o problema, efetivamente, ou então, fazer um estudo? Como eu disse, jamais fui contra a União preservar seus interesses mas fazer um estudo sobre como proteger realmente, sem prejudicar o direito, ou seja, se há interferência localizada, qual a distância mínima que não poderia ter rádios? Ou então, nessas rádios de grande potência, como a onda dela é impedida de chegar, se uma chega, por que a outra não pode chegar? São questões que eu acho que devemos amadurecer e dar soluções reais e não hipotéticas: ´´isso é criminoso, há interferência´´.
Por isso, uma das primeiras coisas que eu pedi foi, se possível, um estudo técnico que proteja os interesses da aviação. Agora, não podemos trabalhar por hipótese, e dizer que derruba avião. Até a prova contrária, tem que deixar funcionar. Se derrubar e comprovar, então temos que trabalhar para não derrubar nenhum outro futuramente. Que façam um estudo sério, não vamos trabalhar com idéias pré-concebidas e genéricas. Vamos trabalhar com casos concretos. Se há um interesse em proteger, que vocês façam um estudo do que precisa ser protegido.
A única coisa que precisa ser preservada é a incolumidade da aviação civil. E não o inverso, a Aeronáutica passar a julgar: ´´como não está dentro da lei, é criminosa´´. Como não está dentro da lei, não é comunitária. Como não está dentro da lei, não tem sentido. É um julgamento que não compete à Aeronáutica, porque o que interessa aos órgãos aeronáuticos é a proteção e o Judiciário também vai fazer tudo para preservar a proteção ao vôo. E não a dominação da sociedade sob pretextos de vôo, aí temos que resolver o problema tecnicamente. Como proteger o vôo sem prejudicar os anseios da sociedade. Se tem cinco mil rádios comunitárias funcionando, e uma ocasionalmente interfere, nós não vamos fechar as cinco mil. Temos que resolver a parte técnica e resolver o problema dela.
É lógico que quando o juiz dá uma busca e apreensão é para uma determinada rádio. Mas coloca-se na mente do Ministério Público, o juiz quer decidir bem, ele quer decidir a favor da comunidade, a favor da Constituição, contra dominações políticas ou econômicas, mas quer preservar a Segurança de Vôo e ele fica num dilema. Quando se fala que as rádios comunitárias interferem na antena, aí já é no plural, as rádios comunitárias derrubam avião... Então o juiz de uma cidade menor também tem medo porque o Tribunal já decidiu aqui, perto da capital, que derruba. Essas generalizações não têm sentido. Nós temos que ser mais honestos conosco mesmos, com o país em que vivemos, com as instituições em que trabalhamos. Eu acho o seguinte: tem problemas? Vamos resolvê-los de boa fé.
O problema tem que ser resolvido de boa fé e procurarmos soluções verdadeiras. Quando se veicula que pode derrubar avião, os juizes não dão as liminares. Se o Judiciário não autorizou todas as rádios comunitárias, é porque o juiz tem receio de derrubar um avião, de prejudicar, porque a notícia está mal tratada. Se ela fosse bem tratada, digamos: perto do aeroporto, numa distância tal, não pode ter rádio comunitária, ou determinada altura ou potência poderia atingir o avião, o resto, o Judiciário já teria liberado.
Eu gostaria de dizer que depois da brilhante aula do engenheiro Fernando, acho que não ficou nenhuma dúvida de que realmente esse assunto de que a rádio comunitária derruba avião é um folclore. Como linha de ação, a idéia da ação piloto, eu acho ela viável e achei a colocação boa, no sentido de que seja uma ação que chame a atenção. Agora, tenho receio com relação à ação ordinária, mesmo com pedido de antecipação de tutela, porque a tendência do Judiciário, nas ações ordinárias é não dar antecipação, a não ser em casos urgentes. E aí caímos numa ação que vai durar 4, 5 anos e não vai ter solução, em princípio. Eu sugeriria um mandato de segurança, instruído com esses elementos técnicos fornecidos pelo professor Fernando, que daria ao juiz, e se feita a petição por um bom jurista, sem desmerecer ninguém, alguém que tenha peso nacional, e aqui tem grandes constitucionalistas. Eu proponho o seguinte: por que essa ação não é intentada pela própria USP, que é uma cidade universitária de 100 mil pessoas, por que não se cria uma rádio comunitária aqui dentro e aí a USP joga o peso dela, todo seu professorado de direito e todo seu professorado técnico, com apoio da Oboré, qual o juiz que vai resistir a tanto argumento?
Eu acho que seria fenomenal porque estaria o peso da Universidade também em jogo, de juristas, e o embasamento técnico que daria ao juiz toda a tranqüilidade para deferir a liminar, que seria fornecido pelo trabalho do prof. Fernando. Concordo que temos de trabalhar primeiro com a Lei existente, seria no sentido do cumprimento da Lei tal qual está. E numa segunda fase, ou paralelamente, poderia trabalhar nos municípios, como Guarulhos, no sentido de fazer uma lei municipal, porque quanto mais confusão, melhor. Aí já falo como advogado, pois advoguei 18 anos. Nessa hora, a confusão beneficia, porque gera um estado perante as autoridades, de que alguma coisa está errada. Porque a lei está sendo atacada de todos os lados, em todos os flancos.
Mandato de segurança por juristas de peso
Então, minha idéia seria um mandato de segurança para se criar uma rádio comunitária na própria USP, assinado por juristas de peso da USP e alicerçado no trabalho técnico da Oboré. Se essa prova do professor Fernando não servir, nada servirá. Porque, lá na ação ordinária vai ser o trabalho dele contra outra. Essa prova seria suficiente para dar ao juiz a tranquilidade necessária para deferir a liminar. Na ação ordinária, o juiz não vai dar uma liminar, e aí a ação vai demorar 2, 3 anos e não vai ter efeito prático. Eu não vejo com bons olhos a ação ordinária, nem declaratória, porque sem provas, o juiz não vai declarar nada. E a ordinária, o juiz não vai dar uma liminar, dificilmente, justamente porque ele tem a tranquilidade de dizer, é uma ação ordinária, não tem nada correndo com urgência e vai ter a oportunidade de fazer uma perícia futura. Então, ele diz: ´´vou esperar a perícia futura para então me definir´´.
Agora, no mandato de segurança, ele é obrigado a se manifestar se o direito está claro e evidente. Se estiver ele, com tranquilidade, dá a liminar.
Uma ação ordinária é uma ação chamada comum, por isso é ordinária, ela tem um rito certo sequencial, no Código. Começa com a inicial, tem uma contestação, tem uma réplica, depois as partes falam quais provas pretendem produzir: pericial, oitiva de testemunhas, todo o tipo de prova que desejar, depois o juiz dá direito de fazer as razões finais e dá uma sentença. É um procedimento ordinário, isso demora às vezes seis meses, um ano só no primeiro grau. E quando vai para o Tribunal fica mais dois, três anos, para ser julgado. Agora, o mandato de segurança funciona da seguinte forma: você entra com a petição, já com toda a documentação que diz que o seu direito é claro, evidente, palpável, e você pede uma liminar. O juiz, vendo aquilo, já dá uma liminar. A liminar já antecipando seu pedido, deferindo seu pedido. Em 24 ou 48 horas, ele já decide, num julgamento provisório, mas que dificilmente voltará atrás. Em toda a minha vida de juiz, em mais de oito anos, nunca revoguei uma liminar, porque a gente lê e toma uma decisão praticamente definitiva. Aí o processo, depois dessa liminar, pede informações da parte do órgão estatal, que está recusando o ato, vai para o Ministério Público, que dá um parecer, favorável ou não, e o juiz logo a seguir dá uma sentença. Uma vez obtida a liminar, esse andamento depois pode demorar 1, 2 anos, não interessa, você já tem a liminar. Essa é a diferença.
Agora o habeas corpus já pressupõe que você está com receio de uma ação criminal. E você está entrando com um habeas corpus preventivo, no sentido de evitar um constrangimento ilegal decorrente de uma hipotética ação criminal. Mas o meu Tribunal, por exemplo, não tem aceito o habeas corpus, dizendo o seguinte: você não fez prova, no habeas corpus, da pequena potência e nem poderia fazer, porque no habeas corpus não pode discutir provas. De modo que lá o tribunal tem cassado os meus salvo-condutos em habeas corpus e as rádios comunitárias ingressam imediatamente com mandato de segurança, eu dou a liminar novamente, restabelecendo o direito dela. Com isso, não conseguiram fechar na minha região as rádios. Por isso lá, desde 1995, elas estão funcionando bem.
Então, eu sugiro um mandato de segurança da própria universidade, instruído com o parecer técnico e sustentado por nomes de peso do constitucionalismo, de modo que o juiz ao receber vai receber uma pretensão de uma universidade, argüida por juristas de peso e embasada numa parte técnica. Porque os juizes têm medo do desconhecido, da parte técnica. Será que derruba avião ou não derruba? Eu não sei, eu tive coragem, dei umas liminares e fiquei esperando ver se caia algum. Aí eu parava de dar. Porque, tirando esse medo, quando o técnico nos dá a garantia técnica de que não há esse risco, a questão vira jurídica. E jurídica, nós somos os experts. E aí a gente não tem receio algum e sabe decidir a bem do povo.
Outra sugestão que eu gostaria de dar é que ao fim desse workshop fossem extraídos resumos para serem encaminhados à Anatel, para a Procuradoria da República, para o próprio Tribunal Regional Federal de SP, pode encaminhar administrativamente para o Presidente do Tribunal, para que tome conhecimento de tudo o que foi discutido aqui, além daquelas sugestões que eu gostaria que constasse da ata, de se colocar em nível legislativo as alterações nessa lei no sentido de que o Artigo 70 da Lei 4112/117/62 não se aplicam às comunitárias, e também uma alteração na lei de tal modo que fique disponibilizado ao município a concessão dos alvarás de rádio de pequenas potências, ficando à União apenas com as de interesse nacionais e de grande porte.
Isso é semelhante ao que houve na Justiça quando Collor seqüestrou o dinheiro do povo. De início, alguns juizes e tribunais estavam exigindo que se requeresse ao Banco Central a devolução do dinheiro, aguardasse uns 30, 40 dias, não tendo resposta ou devolução, entrasse com mandato de segurança. Mas no fim, chegamos à conclusão que era uma tolice porque não ia devolver de maneira nenhuma, em prazo nenhum, e também porque ao entrar com a ação, logo vinha uma contestação. Ora, quem está contestando jamais daria. E o que vai acontecer nesse mandato de segurança é a mesma coisa. Primeiro, vocês vão provar, já tem no seu trabalho técnico que o prazo de um pedido demoraria hipoteticamente até 20 anos.
É o caso das universidades, onde, às vezes o pai, funcionário público, muda de lugar e a universidade nega. Quando ela nega sistematicamente, não há necessidade de pedir para ela negar, porque ela já vai negar nas informações. Na hora em que forem pedidas as informações à Anatel, ela vai dizer: ´´não me pediram nada´´. Mas logo em seguida, com medo de perder a ação ela vai dizer: ´´mas se fosse pedido tal, teria que examinar, teria que cumprir a normal tal e não daria tempo´´. Quer dizer, eu não sou contra pedir, se vocês estrategicamente ou o advogado entenderem que deva.
Paulo Fernando Silveira - é juiz federal aposentado, autor do livro Rádio Comunitária (Editora Del Rey)