O Senado decide nesta semana se o Projeto de Lei nº 28/2017, que burocratiza aplicativos de carona coletiva como o Uber, passa a tramitar em regime de urgência. O requerimento de urgência chega ao plenário após ter sido aprovado rapidamente pela Câmara dos Deputados em abril desse ano, também com urgência.
A matéria, que entrega aos municípios o poder de regulação sobre o serviço e lista exigências para carros e motoristas, avançou pelo processo legislativo mesmo com uma origem pouco transparente. O texto original do PL, apresentado em junho do ano passado, foi escrito pelo então presidente do Sindicato dos Taxistas de São Paulo, Fabio Godoy, e apresentado pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP).
Listamos aqui três pontos para entender e questionar a origem deste projeto de lei.
1. O poder e os interesses dos taxistas se sobrepuseram ao interesse dos consumidores.
A informação consta publicamente no site da Câmara dos Deputados: quando consultados os metadados do arquivo do texto original, o nome de Fabio Godoy aparece como o único autor do projeto, cujo documento PDF inicial foi criado no dia 15 de junho de 2016, às 15h55, no mesmo dia em que ocorreu a apresentação do PL na casa de leis.
A proposição tem como coautores os parlamentares Luiz Carlos Ramos (PTN/RJ), Osmar Serraglio (PMDB/PR), Laudivio Carvalho (SD/MG) e Rôney Nemer (PP/DF). Todos, com exceção de Serraglio, são integrantes da Frente Parlamentar em Defesa dos Interesses da Classe dos Taxistas, coordenada pelo próprio Zarattini.
Veja quem são os parlamentares da bancada do táxi.
Fabio Godoy foi ouvido pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal em audiências públicas sobre apps de transporte em 2016 e 2017, respectivamente. No ano passado, falou em nome do Sindicato dos Taxistas de São Paulo, como presidente. Mais recentemente, aos representantes da câmara alta, ele se apresentou como consultor jurídico da Associação Brasileira das Associações e Cooperativas de Motoristas de Taxi (Abracomtaxi).
Leia aqui o projeto inicial.
O Spotniks procurou o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP) para obter informações a respeito da autoria do projeto e sobre a relação deste com Fabio Godoy. Irritado, o petista perguntou qual era a origem dos dados colocados em dúvida. Ao saber que se tratava de conteúdo do próprio projeto no site da Câmara, se explicou:
O Fabio Godoy é um advogado dos taxistas que nos ajudou a construir o primeiro texto para o projeto de lei. Esse texto foi sofrendo várias modificações antes de ser apresentado oficialmente. Se o documento no site da Câmara está com o nome dele, é um problema da informática. Fabio não é deputado. O texto que está lá é meu e eu me responsabilizo sobre ele.
Vale lembrar que os metadados de um arquivo registram o autor original do texto e sua data de criação. Geralmente, o nome do autor que aparece nesta análise de dados é de onde saiu a primeira redação e corresponde, na maioria das vezes, ao nome de usuário do computador em que foi escrito. Quaisquer alterações posteriores não mudam a autoria original.
O deputado petista foi questionado ainda sobre se não via problema em admitir a ação de grupos de interesse sobre o projeto, sem diálogo com outras categorias:
Não há problema algum nisso. O interesse deste projeto é muito claro desde o início: defender a categoria dos taxistas.
Na visão de Carlos Henrique Barbosa, mestre em Corrupção e Governança pela Universidade de Sussex, as evidências coletadas são suficientes para a abertura de um inquérito para averiguar um eventual delito de corrupção. Ele entende, no entanto, que é legítimo que entidades de classe busquem seus interesses no Congresso, desde que pelos meios adequados.
É legítimo que essa classe faça pressão por seus interesses, desde que forma transparente e pelos meios institucionais adequados. Sem esses dois elementos, o processo legislativo perde legitimidade e macula principalmente as atitudes do deputado envolvido diretamente. Em termos de ilícito, há indícios de que pode ter havido corrupção passiva na proposição dessa lei.
De acordo com Barbosa, a relação entre Zarattini e Godoy expõe a necessidade eminente do estabelecimento de regras claras para o lobby.
É da natureza do deputado propor uma medida que pode agradar uma classe ou outra, o que é completamente natural. Quando não se tem transparência e claridade sobre como tudo ocorreu, fica realmente no ar essa dúvida de como essa relação aconteceu. No caso em tela, se o benefício colhido pelo legislador não for além do apoio político dos taxistas, fica difícil apontar com certeza a existência de crime.
Militante frequente nas pautas sobre mobilidade e transportes, Zarattini tem relação antiga com o setor: na gestão de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, ocupou o cargo de secretário de transportes. Em 2014, foi eleito com doações de empresas de transportes para sua campanha, mas nenhuma cooperativa de taxistas. Naquele ano, ele recebeu R$ 50 mil da Rede Ponto Certo (empresa que opera o sistema de recargas do Bilhete Único em SP), R$ 20 mil da transportadora Braspress e R$ 15 mil da montadora de ônibus Marcopolo.
O Fabio Godoy é um advogado dos taxistas que nos ajudou a construir o primeiro texto para o projeto de lei. Esse texto foi sofrendo várias modificações antes de ser apresentado oficialmente. Se o documento no site da Câmara está com o nome dele, é um problema da informática. Fabio não é deputado. O texto que está lá é meu e eu me responsabilizo sobre ele.
Não há problema algum nisso. O interesse deste projeto é muito claro desde o início: defender a categoria dos taxistas.
É legítimo que essa classe faça pressão por seus interesses, desde que forma transparente e pelos meios institucionais adequados. Sem esses dois elementos, o processo legislativo perde legitimidade e macula principalmente as atitudes do deputado envolvido diretamente. Em termos de ilícito, há indícios de que pode ter havido corrupção passiva na proposição dessa lei.
É da natureza do deputado propor uma medida que pode agradar uma classe ou outra, o que é completamente natural. Quando não se tem transparência e claridade sobre como tudo ocorreu, fica realmente no ar essa dúvida de como essa relação aconteceu. No caso em tela, se o benefício colhido pelo legislador não for além do apoio político dos taxistas, fica difícil apontar com certeza a existência de crime.
2. O projeto pegou atalhos no regimento da Câmara para ser aprovado rapidamente.
Na Câmara, o PL de Zarattini era o de número 5.587/2016, que teve rápida tramitação na casa, sendo aprovado em menos de dez meses após sua entrega. O jurista Bruno Carazza, pesquisador do site Leis e Números, analisou o percurso do projeto no parlamento e identificou algumas manobras legislativas que aceleraram a sua tramitação.
A primeira das manobras foi a desapensação do Projeto de Lei, que inicialmente havia sido apensado ao PL 2.632/2015, do deputado Alberto Fraga (DEM/DF), favorável ao Uber. “Apensação”, na linguagem legislativa, é o procedimento que permite a tramitação conjunta de projetos que tratam de assuntos iguais ou semelhantes. De acordo com o site da Câmara, “quando uma proposta apresentada é semelhante a outra que já está tramitando, a Mesa da Câmara determina que a mais recente seja apensada à mais antiga”.
Atendendo a um requerimento de Zarattini, porém, o presidente da casa Rodrigo Maia, também integrante da bancada dos taxistas, desvinculou os projetos. Este requerimento, aliás, também possui origem alheia à Câmara: foi escrito pelo computador de Jilmar Tatto (PT), então secretário de Transportes da cidade de São Paulo.
Como justificativa para a desapensação, o PT afirmou que o PL de Zarattini tem a intenção de “aperfeiçoar a Lei de Mobilidade Urbana, buscando compatibilizar as novas tecnologias às atividades privativas empreendidas pelos taxistas”, enquanto que o projeto de Fraga “busca regulamentar os serviços de transporte oferecidos privativamente que não foram regulados pela Lei de Mobilidade Urbana”.
Pouco tempo depois, o projeto foi encaminhado a uma comissão especial, em uma segunda manobra de Maia. Com essa medida, o Projeto furou a fila das comissões, nas quais deveria ter passado por sessões de debates e pela votação de diferentes pareceres. Como conta Bruno, doutor em Direito pela UFMG:
Há um dispositivo no Regimento Interno que determina que, quando um projeto é destinado a mais de 3 comissões permanentes, pode ser criada uma comissão especial para tratar exclusivamente dele. Assim, um projeto que precisaria passar por 3 comissões – com debates, apresentação de relatórios e votação em cada uma delas –, passa agora a depender de apenas uma análise para ir à votação em Plenário.
Depois disso, atendendo a outro requerimento de Zarattini, Maia colocou o Projeto em regime de urgência, forçando uma apreciação direta no plenário, no dia 4 de abril. Neste mesmo dia, Daniel Coelho (PSDB-PE) foi designado como relator da proposta e apresentou um parecer com um texto substitutivo, mais enxuto e favorável aos aplicativos de transporte. Segundo o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, a urgência na tramitação é reservada para proposições que versem “sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional”.
Leia o substitutivo de Daniel Coelho.
O texto do tucano foi aprovado, mas seus trechos mais favoráveis aos apps foram retirados da redação final, graças a dois destaques de Zarattini, que também foram aprovados.
3. O texto aprovado desfigurou o parecer do relator, mais favorável aos aplicativos.
Inicialmente, o substitutivo de Coelho alterava o projeto original e definia o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros como atividade de natureza privada. Porém, um destaque do PT (aprovado por 226 votos a 182) retirou do texto esse trecho. Então, se o projeto for aprovado como está, o serviço passa a ser interpretado como de natureza pública, embora a expressão não conste expressamente da definição dada ao serviço. Assim, caberia exclusivamente às prefeituras a regulamentação do serviço dos aplicativos, que passariam a funcionar basicamente como táxis.
Outro destaque do PT foi aprovado por 215 votos a 163, especificando que o motorista do Uber e afins terá de cumprir mais exigências que as estipuladas no substitutivo. O PL impõe uma idade máxima para os veículos, necessidade de autorização específica emitida pela prefeitura quanto ao local da prestação do serviço dentro do município, certificado de registro de veículo em nome do motorista e placa vermelha.
Veja como ficou o texto final aprovado pela Câmara, que agora tramita no Senado Federal.
Como a proposta teve pouco tempo de debates na Câmara, cidadãos e empresas de aplicativos se uniram para pressionar o Senado a rejeitar a proposta. Até a manhã desta terça-feira, 26, o PL tinha mais de 67 mil votos contrários na enquete realizada pelo site da câmara alta, 77% do total.
O voto pode ser registrado neste link, onde é possível verificar a tramitação da matéria.
André Spigariol