No Brasil, até o passado é imprevisível.
Atribuída ao ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, a frase é um resumo de como as contas públicas costumam ser tratadas por aqui. Governo após governo, esqueletos são escondidos no armário e sujeira é jogada para baixo do tapete, tudo para preservar a propaganda oficial.
Na propaganda que estávamos acostumados a ver até pouco tempo atrás, o pré-sal traria uma revolução ao país, injetando R$ 120 bilhões na educação em dez anos e outras centenas de bilhões na saúde. O crescimento da economia estava garantido, graças aos investimentos da Petrobrás e seus fornecedores, que ultrapassavam a barreira de R$ 1 trilhão. Para quem se acostumou a ouvir estes números fantásticos, junho de 2017 mostrou-se um verdadeiro balde de água fria. Foi neste mês que metade do petróleo extraído no país passou a vir do pré-sal.
A previsão de produzir quatro milhões de barris por dia tornou-se apenas miragem. Produzimos apenas 15% mais que no início da febre do óleo. O resultado? A Petrobrás inteira vale hoje R$ 178 bilhões, cerca de 10% menos que o dinheiro injetado pelo governo e pelos acionistas na maior capitalização da história da bolsa brasileira (quando corrigido pela inflação).
Descobrimos, neste meio tempo, que o Fies – outro programa revolucionário – escondia uma inadimplência de 50%, e seu custo saltou de R$ 600 milhões para R$ 11 bilhões, entre 2013 e 2015; ou que empréstimos subsidiados a grandes empresas custaram no mesmo período nada menos do que R$ 223 bilhões; ou que fraudes não auditadas no INSS somam hoje uma fatura de R$ 6 bilhões, apenas em uma modalidade de benefício, o auxílio-doença.
Todos estes números fazem parte de um mesmo escândalo, ainda adormecido: o governo se negou durante anos a incluí-los na contabilidade oficial. Varreu a sujeira para debaixo do tapete e manteve-se fiel à própria propaganda.
Graças à Lava Jato e às demais investigações da Polícia Federal, hoje sabemos que os planos infalíveis para fazer o país prosperar eram na verdade planos infalíveis destinados a fazer prosperar partidos, políticos e alguns poucos privilegiados que mantiveram relação próxima ao governo e ao Congresso.
Na última semana, o mesmo Congresso decidiu abrir a caixa-preta daquele que, pelos números, é de longe nosso maior esquema conhecido, o do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), parte fundamental do crescimento monstruoso de empresas como Odebrecht e JBS. A CPI ainda está em fase inicial, mas adiantamos aqui algumas das descobertas que estão por vir.
1. Entre 2003 e 2016, os grandes empresários receberam R$ 1 trilhão do banco, contra R$ 372 bilhões de todos os programas sociais.
Quando se trata de propaganda oficial, poucas coisas ganharam tanta relevância nos últimos anos quanto os programas sociais. Do Bolsa-Família ao Minha Casa, Minha Vida, passando ainda por Fies, Pronatec, Ciência Sem Fronteiras, etc., quase tudo era uma prova legítima de que o governo estava de fato empenhado em mudar a realidade dos mais pobres.
Na outra ponta, o mesmo governo empenhava-se em garantir financiamentos generosos para um grupo seleto, de pouco mais de 1.000 empresas do país, cujo faturamento passava dos R$ 300 milhões. Sozinhas, estas empresas – que representam 0,00002% das empresas do país – ficaram com 67% de todo o financiamento concedido pelo BNDES. O custo? R$ 1 trilhão em subsídios totais.
Na prática, cada um dos 85 milhões de brasileiros atingidos por algum programa social, recebeu ao longo do mesmo período uma média de R$ 437 por ano em benefícios.
Pequeno detalhe: cada um destes 85 milhões de brasileiros paga mensalmente 53,9% da sua renda em impostos para subsidiar o outro grupo.
2. 80% do lucro gerado pelo programa ficou com os bancos privados.
Com boa parte dos recursos do banco tendo origem no caixa do governo federal, por meio de emissão de dívida pública, o BNDES ainda encontrou um problema para repassá-lo às empresas: o banco não possui agências e sua capacidade de distribuir os recursos é limitada.
Foi aí que grandes bancos privados entraram em cena. Do total de recursos liberados, cerca de 91% se deu através das chamadas operações indiretas. Em outras palavras, o BNDES pegava dinheiro com o governo, repassava-o aos bancos privados e estes realizavam as operações finais.
Todo o risco da operação, realizada com juros menores do que a inflação no período, ficava com o próprio BNDES, enquanto o custo real de captação do dinheiro ficava com o governo. Na parte dos lucros, porém, a coisa mudava de figura.
Apenas no PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, que liberou R$ 359 bilhões entre 2008 e 2015, os bancos privados lucraram R$ 8 bilhões, contra R$ 2 bilhões do banco público.
Em inúmeros casos, a taxa de juros praticada pelo banco chegou a ser de 0%, contra 1,5% nos empréstimos de maior risco (valor que se somaria aos 5,5% que o banco era obrigado a pagar ao governo pelo empréstimo dos recursos).
Na prática, o governo criou não apenas um “Bolsa-Empresário”, mas também um “Bolsa-Banqueiro”, com lucros altos e risco zero.
3. As obras realizadas pela Odebrecht no exterior geraram um prejuízo de R$ 1 bilhão por ano aos trabalhadores.
O porto de Mariel, em Cuba, tornou-se a grande estrela das críticas feitas ao financiamento do BNDES a obras no exterior. Trata-se não apenas de apoio a uma ditadura com sérios problemas de violação dos direitos humanos, mas também uma das operações mais privilegiadas já realizadas pelo sistema financeiro mundial.
Para emprestar os recursos à Odebrecht, que construiria o porto, tivemos de aceitar como garantia de pagamento por parte do governo cubano a renda obtida pelo país em exportação de tabaco, além de garantir que os juros se manteriam rigorosamente abaixo dos praticados mundialmente em operações do tipo e atrelar o valor da operação ao peso cubano, e não ao dólar, como seria o padrão.
Como estas, outras 3.000 obras foram realizadas com dinheiro brasileiro, sendo 85% delas feitas pela empreiteira Odebrecht.
Ao contrário das obras realizadas localmente, o banco utilizou recursos do FAT, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, para financiar as obras. Ao todo R$ 55 bilhõestiveram este destino.
Graças à diferença entre os juros praticados lá e a inflação aqui, os trabalhadores brasileiros tiveram um prejuízo de R$ 11 bilhões com as operações, ou cerca de R$ 1 bilhão por ano.
Com cerca de 35 milhões de contas ativas no FAT, ligado ao FGTS, o prejuízo médio de cada trabalhador chegou aos R$ 314, apenas com obras como a linha 4 do metrô de Caracas na Venezuela, hidrelétricas na Nicarágua, estradas em Angola e inúmeras outras.
4. As quatro empresas que mais receberam dinheiro do banco no período estão no centro da Lava Jato.
Com a prisão do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, a JBS torna-se hoje a única entre as quatro maiores beneficiárias pelo banco a não ter seu presidente ou ex-presidente preso. Eike Batista, que cumpre prisão domiciliar, e Marcelo Odebrecht, condenado a mais de 19 anos de prisão, concluem a lista.
Dentre todas as empresas, nenhuma recebeu tantos recursos quanto a estatal. Foram cerca de R$ 35 bilhões para financiar o ousado plano de investimentos da companhia, em especial obras em refinarias como Abreu e Lima e o pré-sal, além da construção de sondas pela empresa Sete Brasil, formada por um consórcio de fundos de pensão e bancos privados como BTG, Santander e Bradesco.
Segundo se sabe hoje, pelas investigações da força tarefa da operação Lava Jato, foi nestas obras que ocorreram a maior parte dos crimes contra a Petrobras, cujos protagonistas foram as maiores empreiteiras do país.
A maior delas, a Odebrecht, beneficiou-se não apenas indiretamente, como também diretamente ao obter linhas de financiamentos para negócios tão distintos quanto a produção de cana-de-açúcar e etanol e submarinos nucleares. De fato, a Odebrecht – assim como a EBX de Eike Batista – tornou-se uma especialista em tudo.
Onde quer que houvesse uma oportunidade de conseguir um financiamento público e prestar um serviço ao governo, lá estava a empreiteira.
Das empresas de Eike financiadas pelo banco, a Eneva, de energia, e a Prumo, de logística, mudaram de mãos, sendo vendidas para controladores estrangeiros, como o nome já deixa claro (perderam o famoso X colocado pelo empresário nas empresas originais).
O mesmo destino aguarda boa parte do império construído pela família Batista na JBS. Hoje, da empresa de iogurtes à empresa de celulose, quase tudo está à venda.
5. 90% dos recursos do banco são direcionados a empresas que geram 16% dos empregos do país.
Empreender no Brasil não é nada fácil. Gastamos quase oito vezes mais tempo para preencher burocracia e pagar impostos do que a média dos países ricos. Ainda assim, temos quase duas vezes mais empresas que os Estados Unidos.
O motivo desta distorção é bastante simples: no Brasil, empreender e montar o próprio negócio – seja ele um mercadinho ou uma caixa de isopor para vender bebida na praia – pode ser a alternativa entre não ter renda alguma ou conseguir sobreviver no fim do mês.
Há 48 milhões de brasileiros nestas condições, o que na prática significa que há mais patrões do que empregados no Brasil e, na sua maioria, patrões cuja remuneração não chega sequer a dois salários mínimos. 36% deles recebe entre R$ 0 e um salário mínimo no fim do mês (incluindo aí boa parte dos 1,8 milhão que quebram todo ano). Apenas 12% recebe mais de cinco salários mínimos.
Ainda assim, quando decidiu alavancar a economia, o governo decidiu que o melhor a ser feito era alavancar aqueles que, em condições normais, poderiam se financiar por meio de bancos, ou ainda da bolsa de valores.
O resultado é que, desde que os desembolsos do banco começaram a explodir, o número de empresas que abriu capital na Bovespa despencou.
Pense rápido: sendo você um grande empresário, qual a melhor alternativa para captar grana para o seu negócio? Vender parte das suas ações, cumprir regras rígidas de gestão e dar satisfação a acionistas minoritários, ou pegar uma grana em um banco público, gastar como quiser e ainda pagar um valor menor do que a inflação pelos empréstimos? O resultado é uma piora bastante elevada nos padrões de governança de médias e grandes empresas.
A gestão que todo grande empresário gosta de defender como alternativa às crises constantes do governo foi severamente afetada por estas políticas. Tudo isso com a conivência dos representantes empresariais, é claro.
6. As grandes empresas apoiaram estas medidas e você pagou o pato.
O clima de revolta com possíveis aumentos de impostos tem sido canalizado com bastante eficiência por entidades como a FIESP, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. O grande problema é o que está em falta, tanto na política quanto na elite brasileira: coerência.
Para Benjamin Steinbruch, dono da CSN e atual vice-presidente da FIESP, o país precisaria de três BNDES para dar conta do recado.
Apoios enfáticos ao que algumas revistas chegaram a chamar de choque de capitalismo não foram nenhuma novidade. Em 2012, o então presidente do BTG, André Esteves, chegou a chamar de revolucionária a medida promovida pela presidente Dilma Rousseff de conceder portos, aeroportos, ferrovias e rodovias à iniciativa privada, tudo financiado com dinheiro do mesmo banco público do qual o BTG foi um dos maiores entusiastas, uma vez que tornou-se um dos 70 agentes repassadores de créditos.
Grandes empresas, como a hoje falida Oi, tiveram crescimento vertiginoso com o crédito amigo e retribuíram com elogios às medidas adotadas até então.
7. Todas as famílias e pequenas e microempresas brasileiras foram forçadas a ficar com menos de 20% do crédito total no país.
Que o Brasil não é um país habituado à poupança também não chega a ser nenhuma novidade. Exatamente por isso, os financiamentos crescentes que impulsionariam o lucro dos bancos tiveram como base a emissão de dívida pública.
Somando os três maiores bancos públicos do país, cerca de 53% do crédito existente passou a ser gerado pelo estado brasileiro, com quase 60% sendo subsidiado, seja para grandes empresas ou para o agronegócio. Durante uma década, praticamente todo mundo que sabia lidar com a tal da burocracia pôde buscar um subsídio pra chamar de seu e jogar a conta pro colo do contribuinte.
Ao todo, empresas e famílias economizam 18% ao ano, em relação ao PIB. O governo gasta 3% a mais do que arrecada e estrangeiros colocam outros 3% do PIB em investimentos. Some tudo e o resultado é uma taxa de investimentos que dificilmente passa dos 18%
Desde que começamos a impulsionar nosso crescimento via crédito, o investimento em máquinas e equipamentos do país não chegou a sofrer grandes alterações.
Saímos de um investimento de 18,3% em 2008, para 18,4% em 2015, com uma pequena diferença: nos endividamos em 15% do PIB para fazer isso.
Ao todo, dos R$ 4,4 trilhões da dívida total brasileira hoje, nada menos do que 20% teve como finalidade financiar e subsidiar empresas.
O resultado é que, para muitas empresas, tornou-se mais lógico não investir recursos próprios e alocar este dinheiro na compra de dívida pública. Desta forma, poderiam lucrar 6% já descontada a inflação, e ainda assim investir, já que sempre poderiam contar com a mão amiga do mesmo governo que lhes pagava polpudos lucros.
Ao todo, 72% do crédito do país hoje é destinado para financiar o governo, enquanto grandes empresas abocanham quase um terço do crédito restante, deixando menos de R$ 1 em cada R$ 5 de crédito existente no país para micro e pequenas empresas e famílias que decidam trocar de carro ou simplesmente comprar um celular parcelado.
8. Você, seus filhos e seus netos ainda pagarão a conta pelo menos até 2060.
Cerca de sete anos foi o tempo necessário para o PSI – Programa de Sustentação do Investimento – ser iniciado e abandonado pelo governo federal. Com as novas discussões sobre o fim da taxa de juros praticada pelo banco, abaixo das taxas de mercado, e a criação de uma nova taxa, que remunere de acordo com os juros praticados pelo próprio governo – a TLP – a expectativa é que os efeitos do programa sejam diluídos, ao menos no curto prazo.
O certo é que, independentemente do que se mude daqui pra frente, tal política deixou um saldo negativo nas contas públicas que, pela previsão mais otimista, terminará de ser pago em 2060.
Com juros de 5,5% ao ano, os empréstimos do tesouro ao banco se estendem por décadas, em uma condição pra lá de generosa. Ainda que R$ 100 bilhões tenham sido adiantados em 2016, o saldo ainda permanece e o banco terá de devolver.
Enquanto os recursos do próprio banco continuam sendo rolados, com novos empréstimos, a conta segue pesando, e segundo o próprio governo estima, serãoR$ 323,2 bilhões.
Apenas em 2017, o custo será de R$ 31 bilhões, valor superior aos desembolsos do Bolsa-Família, duas vezes maior que os investimentos em saneamento básico, maior do que os gastos com universidades públicas e quase dez vezes o gasto com equipamentos hospitalares para reaparelhar o SUS.
Trata-se definitivamente de uma herança que, na melhor das hipóteses, serve de aviso para toda vez que o governo chegar e disser que tem uma solução para salvar o país. Na hipótese mais realista, uma conta que se somará às próximas tentativas de fazer enfim chegar o país do futuro, tudo capitaneado por um presidente que nos prometerá maravilhas e que certamente não estará aqui quando a conta chegar.
Felippe Hermes