Foto: Reprodução/ Amazônia na Rede
Ao receber a reportagem em sua sala, o diretor do IML (Instituto Médico Legal) de Belo Horizonte se desculpou pelos panos espalhados pelo chão. "Choveu muito aqui ontem", justificou José Roberto de Rezende Costa. O banheiro para o público não tinha papel higiênico, o botão da descarga estava quebrado e a tranca era um pedaço de madeira.
A sede com paredes descascadas, chão gasto, ventiladores antigos e divisórias de PVC é mesmo a cara de uma repartição pública de um estado em graves dificuldades financeiras, como é Minas Gerais. Mas foi ali que 259 das 270 vítimas do rompimento da Barragem 1, da Vale, em Brumadinho (MG), foram identificadas e puderam ser enterradas por suas famílias.
Quase um ano após o dia em que a barragem se desfez, em 25 de janeiro de 2019, e a lama engoliu a cidade, o IML ainda recebe diariamente fragmentos de corpos encontrados pelos Bombeiros de Minas Gerais. A corporação diz que o objetivo é encerrar os trabalhos com as 11 vítimas restantes identificadas.
Por solidariedade às famílias, os legistas do IML passaram a tratar cada material humano como um caso, em vez de cadáveres, restos mortais e outras terminologias científicas comuns na área.
No total, o instituto recebeu até agora 854 casos —79 eram corpos completos, 145 eram, na verdade, pedaços de animais e 44 ainda estão em aberto, ou seja, em processo de tentativa de extração do DNA.
Em 81 casos, o material genético não pôde ser decodificado em razão do estado avançado de decomposição, que amplia a presença de bactérias.
A expertise dos profissionais, a capacidade de lidar com um volume de trabalho inédito ali e os equipamentos doados pela Vale para agilizar a identificação são o legado da tragédia para o IML.
"É um desastre que não tem dimensão, mas saímos melhores do que entramos, mais preparados", diz Costa.
"Desconheço algum caso de desastre no mundo, dessa magnitude, com essa taxa de sucesso de identificação", completa o diretor, que foi convidado para palestrar sobre o rompimento da barragem em Brumadinho em simpósio da Interpol em Singapura.
Os equipamentos doados pela Vale, segundo acordo intermediado pelo Ministério Público, serão incorporados ao patrimônio do IML. Um tomógrafo, por exemplo, foi usado recentemente nas vítimas mortas por suspeita de intoxicação da cerveja Backer.
A necropsia visual, feita por exames de imagem, é instrumento para determinar causa da morte. No caso de Brumadinho, o equipamento permitiu localizar os ossos de um bebê dentro do corpo de uma vítima grávida.
Para atribuir nomes a cada um dos casos, a equipe do IML usa diferentes métodos, que variam conforme o estado de conservação do material recolhido.
Há a impressão digital, que foi mais eficaz graças ao compartilhamento de informações com a Polícia Federal. A PF criou um banco de dados isolando as digitais das 270 vítimas, o que facilitava a combinação entre os corpos e as informações armazenadas.
Também foi utilizada a odontologia forense para reconhecer as vítimas pela arcada dentária e por algum tratamento que a pessoa tenha feito nos dentes. O mesmo para a antropologia ou morfologia forense, que identificam por próteses, pinos, parafusos, placas e até tatuagens que os corpos venham a ter.
As vítimas são submetidas a exames de tomografia e raio-X. As famílias de Brumadinho levaram ao IML exames antigos dos parentes desaparecidos, assim como fotos de tatuagens.
E houve ainda coleta de seu DNA —método utilizado quando os demais são inconclusivos. Uma vez extraído o DNA da vítima, o equipamento dispõe o "match" com parentes de forma célere.
Se os equipamentos não conseguem extrair o material genético, os legistas tentam com outra parte da amostra, e com outra, e com outra. "Teve família que nós identificamos o parente, mas que não pôde levar nada, porque o material era pouco e acabou na extração do DNA."
Quando um caso é resolvido, a família é avisada por assistentes sociais e busca a vítima em caixão para o sepultamento, mesmo que não seja um corpo inteiro ali. Os profissionais só informam se há um corpo completo ou parte dele (e qual parte) se a família pergunta.
A maioria dos parentes assinou um termo no IML, segundo o qual eles não serão avisados caso novo fragmento da mesma vítima seja identificado e autorizando o instituto a dar a destinação adequada ao material. Para enterrar novamente um novo fragmento junto do anterior, é preciso haver autorização judicial para exumação, o que seria um transtorno para as famílias.
A destinação dos fragmentos está sendo decidida em reuniões com o IML, Bombeiros, Ministério Público, Vale e familiares das vítimas. A tendência é de que haja cremação.
Os parentes também são orientados pelo IML a não ver as vítimas. Costa se lembra, porém, de um homem que insistiu para ver os pés resgatados do irmão. O diretor tentou dissuadi-lo, afinal não seria muito efetivo o reconhecimento visual. Porém entendeu depois: um dos pés tinha uma deformidade, e o homem se convenceu da morte do irmão.
Em geral, como tudo tem cor de lama, são os cachorros dos Bombeiros que conseguem cheirar e localizar os fragmentos. Oito meses antes, em 2018, a Faculdade de Medicina da UFMG havia cedido tecidos de cadáveres usados para estudos para o treinamento desses cães.
O intercâmbio de informações entre IML e Bombeiros é constante. Já foram quatro ou cinco, mas hoje ao menos um perito (médico, veterinário ou biólogo) trabalha na base da corporação, em Brumadinho, para rejeitar de pronto pedaços de corpos de animais e até vegetais —um galho já foi confundido com osso, por exemplo.
Ao lado de Costa, dois médicos também integrantes da diretoria do IML mostram que o instituto guarda dados detalhados e planilhados de cada caso, com nome, idade, sexo, laudos, fotos, data em que deu entrada e tudo mais que for pertinente.
Todo esse trabalho não seria possível só com a equipe de 250 pessoas do local, que inclui 80 médicos legistas e cujo restante se divide entre investigadores, peritos, escrivães e área administrativa.
"No dia em que aconteceu o desastre, nós percebemos que ultrapassaria nossa capacidade de atendimento", diz Costa.
No auge da crise, havia uma força-tarefa de mais de 500 pessoas: médicos legistas de outros estados e de outras instituições públicas, outros membros da Polícia Civil, peritos da Polícia Federal, servidores aposentados que retornaram ao trabalho, auxiliares de necropsia contratados pela Vale (eram 12, hoje são 4), fora as horas extras da equipe original do IML.
"Todo mundo voluntário, todos se prontificaram", afirma o diretor.
Os médicos lembram que, depois de dias com poucas horas de sono e trabalho incansável, lá pela madrugada, quando mais uma vítima era identificada, todos desciam ao necrotério para aplaudir e comemorar.
"Houve uma união de forças", completa. Inclusive o Exército participou, isolando o quarteirão do IML, fazendo segurança e descarregando corpos.
Até três meses após o rompimento, o IML de BH atendia com exclusividade as famílias de Brumadinho. Os demais casos antes processados ali passaram a ser enviados para o IML de Betim, na região metropolitana, que também recebeu reforço de equipes do interior.
"Não teve recurso humano e material que a gente tenha precisado e não tenha conseguido." A crise econômica de Minas Gerais, segundo Costa, não foi um limitador. Durante todo o ano de 2019, os funcionários do IML recebiam salários parcelados.
A Vale também doou material descartável (como máscaras e luvas), além do equipamento de tomografia e de um sequenciador de DNA mais sensível, o Ilumina, sem o qual o índice de insucessos seria maior. E alugou três caminhões com refrigeração subzero para acondicionar os corpos.
Um deles ainda continua em operação, com todos os casos armazenados à espera da destinação.